Desesperança e desespero. Mundo pelo avesso, ordem caótica. Olhares opacos, barrigas vazias. O absurdo é a regra do dia. Instituições atadas na própria inércia e o mal (antes) inafiançável virado em corriqueiro brinquedo de criança. A lógica sob ataques constantes procedentes de fábricas de falsos fatos cujo único propósito é produzir bizarrices em quantidade suficiente para desestimular que sejam debeladas.
Os insetos acompanham os porcos que ocupam a casa grande. A sala fede. É o banquete de Trimalquião. O Brasil vive a prova funesta de que distopia não é apenas um termo de ficção.
Em 1868, cerca de cinco anos antes de sua morte, o filósofo inglês John Stuart Mill contribuiu o termo distopia para significar um universo e sociedades fictícias em que as condições de vida, marcadas por “miséria humana, pobreza, terror, corrupção e opressão”, são absolutamente ruins. — Vide Utopia e Distopia (em inglês).
Talvez tenha notado a semelhança entre os termos “distopia” e “utopia”. Ambos os termos têm origem no grego topos, que significa “lugar”. A diferença de significados entre os dois termos é dada pelo prefixo em cada caso. Utopia é a junção de ou (não) + topos (lugar). Distopia é a junção de dys (ruim, desordenado) + topos (lugar). A obra Utopia, do escritor inglês Thomas More, lançada em 1516, trata de uma ilha fictícia chamada Utopia, cujos sistemas político, social e religioso eram tanto mais próximos do ideal como do impraticável.
A distopia é tema frequente na literatura. Um exemplo do gênero é o livro Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell (1949), cujo nome verdadeiro era Eric Arthur Blair. Essa distopia de Orwell retrata quatro ministérios (da paz, do amor, da abundância e da verdade) numa antítese dos nomes que levam. O da paz promove a guerra, o do amor sustenta o ódio, o da abundância alastra a fome e o da verdade espalha mentiras, numa estratégia de manutenção de um sistema de governo e governantes débeis.
O que é ficção na obra de Orwell ganha substância de fato nos precários (por serem tendenciosos e não confiáveis) meios de comunicação em diversos países. No Brasil, o ministério da saúde promove a pandemia e a morte que a acompanha, quando o ministro (que-droga) vem a público lutar contra medidas de proteção e prevenção. É o reino da insensatez. As pessoas costumavam tentar dissimular seus torpes argumentos, mas hoje elas parecem ter orgulho de seus absurdos distópicos.
O ministério da economia promove a fome, o desemprego, a transferência dos parcos recursos dos pobres para as vastas fortunas dos gananciosos contumazes. O ministério da educação faz o que pode para minar os esforços de servidores públicos que tentam oferecer educação de qualidade às classes menos favorecidas da sociedade. O ministério da agricultura, análogo ao da abundância, de Orwell, promove os interesses de quem produz muito, gerando pouquíssimo emprego e aumentando a concentração de renda, para vender no mercado exterior os produtos aos quais grande parte da população local já não tem acesso, por causa de seus preços proibitivos.
O Brasil de 2021 é uma distopia tenebrosa. A desesperança e o desespero estão estampados nos rostos da gente que já não tem onde morar e não sabe se terá o que comer antes de findar o dia. O governo, que deveria proteger seu povo, faz chacota de quem morre asfixiado por causa de sua incompetência. Não tem pejo da corrupção que corrói os valores que da boca pra fora afirma defender. A opressão é a ordem do dia. O moral do povo, que não se vê nas ruas em marcha, quase por completo desmoralizado.
Apostam os líderes na impunidade e na fraca memória coletiva. Apostam no desmantelo das instituições que deveriam fiscalizar seus atos.
O Brasil é alvo fácil. A temporada de seca de 1981-82 enfraqueceu por demais o rebanho de três duzias de vacas de cria, que a gente tinha lá no Tocantins, quando Tocantins ainda era Goiás. A imagem da vaca Estrela, de pelagem avermelhada com uma mancha branca na testa e o relevo dos ossos sob o couro, ainda é bem viva. Todo esforço para levantar o animal foi inútil. Foi devastador chegar ao local em que ela jazia, ainda viva, e ver que os urubus não se permitiram esperar pelo último suspiro da rês moribunda antes de começar a devorá-la. Brasil, vaca Estrela.
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