A coragem de escrever

Escrever é um ato de coragem.

Por diferentes razões, o ato de escrever põe à prova facetas da personalidade de quem escreve. Quando publico, submeto meus pensamentos à avaliação de quem lê o que escrevo. Todo texto escrito é um convite ao julgamento de seu autor. O juiz-leitor, em muitos casos, será menos qualificado do que réu-autor para fazer qualquer julgamento. O juiz-leitor nem sempre terá sido treinado em despir de preconceitos seu juízo sobre o texto. O preconceito está para o julgamento como o ímã para a bússola, que torna mentiroso o Norte verdadeiro.

Preconceito é traço humano. Talvez não seja exagero afirmar que cada pessoa tem alguma medida de preconceito. Dentre as formas de preconceito, o linguístico é um que está profundamente arraigado na sociedade. Isso talvez se deva ao modelo de ensino que recebemos desde a tenra infância. É na escola que aprendemos, por exemplo, que articular sujeito plural com verbo singular é “errado”, é coisa de gente sem cultura, sem educação, estúpida e ignorante. A falta de concordância é quase um pecado passivo de ostracismo como punição. Os desvios da “norma” gramatical culta são carregados de noções pejorativas, são tidos como violações do alvo “sagrado” de andar na linha do expressar-se bem.

O que os promotores do preconceito linguístico parecem desperceber é que pouca coisa na língua é tão simples como “certo” versus “errado”. Dizer que uma forma de expressão é a “certa” é análogo a dizer que a velocidade certa de um carro é a de 80 km/h. As condições climáticas, o local, o horário, o movimento de veículos, as condições da via, as condições do carro e de seus ocupantes e uma infinidade de outros fatores são o que determina a velocidade adequada para cada trecho. De modo semelhante, a expressão linguística adequada depende de fatores circunstanciais, dentre tais, quem fala, onde, por quê, para quê, para quem e quando. A forma de expressão certa é aquela que transmite compreensivelmente uma mensagem qualquer. Essa definição de “certa” acomoda ampla variedade de formas, a depender daqueles fatores circunstanciais.

Existe forma “errada” na expressão linguística? Isso depende da definição de “erro” que se admita. Em linguagem, erro refere ao desvio da norma padrão prescrita nos livros de gramática. O “erro de português”, para a gramática tradicional, é tudo aquilo que foge daquela prescrição. Para mim, o “erro de português” foi ter invadido o Brasil e outras terras que nomearam colônias. A fórmula da gramática tradicional para identificar o “erro” é simplista, positivista e pouco inteligente. Por quê? Considere o que segue.

Um motorista entra no carro e dirige 800 quilômetros, saindo do Rio de Janeiro em direção a João Pinheiro, em Minas Gerais. As circunstâncias mudam ao longo da estrada: chuva, buracos na pista, cansaço do motorista, tráfego noturno, condições psicológicas de outros ocupantes do veículo, para mencionar algumas. Cada circunstância pede ajustes na forma de dirigir e na velocidade. A velocidade certa não é a que aparece nas placas, mas a que mais segurança ofereça diante das circunstâncias. A forma certa não é e nem pode ser fixa. Adaptar-se às circunstâncias, deixar de seguir uma forma fixa, não é “erro” do motorista. “Erro” seria ele deixar o caminho e ir em outra direção, posto que seu objetivo é chegar a João Pinheiro.

De modo análogo, se a mensagem que se pretende transmitir linguisticamente perder integridade no ato da transmissão, se seu sentido chegar alterado ou se não for compreendida, esse seria um “erro” de linguagem porque o objetivo não seria alcançado. Por outro lado, se o objetivo da mensagem puder ser alcançado, ainda que a forma de transmissão seja ajustada às circunstâncias de fala, será que se pode dizer que há erro? Minha resposta é “não”.

Ajustes não constituem erro, e desvios da norma padrão são ajustes para se alcançar um objetivo. “Erro” é o evento que impede que se atinja o alvo comunicativo.

O argumento acima não é uma apologia à ignorância quanto às formas de se expressar linguisticamente. Ao contrário, é importante conhecer a norma culta e saber quando usá-la. Importantíssimo, também, é saber quando não usá-la. Ninguém ousaria entrar em tribunal usando apenas minúsculas roupas de banho. Tampouco seria adequado ir à praia para curtir o sol usando paletó e gravata. A pessoa que usa a norma padrão em ocasiões informais passa por esnobe e a que usa linguagem largada, adequada a conversas descontraídas entre amigos, em situações muito formais passa por ignorante.

Expressar-se linguisticamente é um ato de coragem. Na escrita, o réu-autor abre mão de sua defesa sem saber ao certo se poderá contar com o bom-senso do juiz-leitor. Os juízes-leitores são formados em escolas simplistas de “certo” versus “errado”. E, no entanto, diria Hamlet: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que supõe a nossa filosofia” (Hamlet, Ato 1, Cena 5, Shakespeare). Em outras palavras, estamos acostumados ao funcionamento da linguagem fora da esfera idealizada pela gramática tradicional e deveríamos ser capazes de perceber que o que funciona em linguagem, independentemente das noções de erro e acerto, é real e não deveria ser simplesmente rotulado de ignorância.

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