Cuidado: Inteligência Artificial

A que chamam de inteligência artificial talvez não seja ruim em si mesma. Afinal, ela acelera a execução de tarefas tediosas. No entanto, ao suprir recursos para autômatos humanos, como agentes acéfalos, alcançarem metas impostas, seu lado macabro começa a se manifestar. O que importa é a produção do que quer que seja e seu retorno do capital para os bolsos de meia dúzia de rêmoras que nunca souberam o que é produzir.

Lembro de ver, nos canaviais dos anos 1990 e até de depois daquela década, centenas agrupadas de trabalhadores cortando cana queimada em condições absolutamente insalubres. Nos anos desde então, máquinas sofisticadas eliminaram a queima da palha da cana e assumiram a tediosa e danosa tarefa de a cortar e transportar. As máquinas também esvaziaram as panelas nas casas dos cortadores de cana. Sem qualificação suficiente para conseguir outros trabalhos, quantas centenas de milhares caíram na miséria? Quantos não conseguiram assistência social que lhes era devida? Quantos morreram de fome sem nem sequer serem notados?

O dano que a inteligência artificial pode e provavelmente vai causar é incomensuravelmente maior. Ela elimina, é verdade, a necessidade de pessoas realizarem tarefas maçantes, como a escrita em código computacional, por exemplo. Ao mesmo tempo, a imitação do raciocínio humano, a mímica do pensar, alcançada pela inteligência artificial, compele as pessoas à preguiça mental.

É como se cada pessoa recebesse e fosse obrigada usar uma cadeira que se move rapidamente em qualquer direção, dispensando o esforço físico da caminhada. Você tem de produzir mais e mais rápido; se não usar essa cadeira, você está fora do jogo. Esgotada a sua capacidade produtiva, descarte; tomam-lhe a cadeira. Eis aí você, de pernas atrofiadas, sem poder se mover.

O modelo capitalista não requer cabeças pensantes, requer apenas mãos sem cérebro. A inteligência artificial “pensa” mais rápido e segue por uma lógica mais arguta do que a enviesada lógica humana. Ela é pensamento controlado, enviesado desde a raiz, e (ainda) não se rebela contra seus amos. Em última análise, ela é boa apenas para os objetivos dos chamados “donos” do capital.

Charles Chaplin in 'Modern Times', 1936. Written, Directed and Produced by Charles Chaplin
Charles Chaplin em ‘Tempos Modernos’, 1936.

Se a inteligência artificial somente fosse usada como ferramenta, ela poderia ser boa. O problema é a troca de papéis que ela preconiza: o usuário se torna ferramenta; a ferramenta se torna guru. Num primeiro momento, a construção dos grandes modelos de linguagem (LLM – Large Language Models) parte da expropriação indébita da informação criada, distribuída e publicada por pessoas iguais a você. Informação veiculada em todo tipo de linguagem, seja ela escrita, falada, gravada em vídeo, expressa em arte, é coletada sem autorização para o uso específico de criação de modelos de linguagem. Portanto, desde o princípio, pessoas se tornam ferramentas, no sentido de serem meras fornecedoras (não reconhecidas, anonimizadas, no melhor dos casos; completamente apagadas, na maioria deles) de informação. Será que se pode esperar apenas o bem de algo cuja base é o roubo de dados, o apagamento e a violação de direitos autorais, quando não humanos?

A chamada inteligência artificial se prontifica a “pensar” em seu lugar e assedia pessoas de todas as rodas para abdicarem da faculdade ímpar que nos torna humanos: tirar conclusões e tomar decisões baseadas no pensamento crítico. O uso da inteligência artificial em trabalhos escolares, por exemplo, é alarmante. O que se pode esperar de uma geração de estudantes que, em grande parte, troca (e perde) a capacidade de aprender a resolver problemas pela comodidade de copiar e colar respostas elaboradas por um sistema de inteligência artificial, respostas tais que eles mesmos são, muitas vezes, incapazes de compreender? Que tipo de profissionais trará essa geração?

Além disso, o uso indiscriminado da inteligência artificial borra traços identitários e bloqueia a manifestação de identidade. Ela funciona como um filtro que elimina manchas e rugas da pele que são traços de diferenciação e identificação de alguém no mundo real. Meu texto não precisa ser perfeito, mas o da inteligência artificial busca uma perfeição gramatical abstrata, uniforme, segundo padrões e regras rígidas que eu posso preferir não seguir sem detrimento para meu ato comunicativo.

As ferramentas de inteligência artificial são projetadas de modo perpetuar a segregação entre dois estratos da sociedade: uma classe treinada para pensar (primeiro em seus próprios interesses, invariavelmente) e outra treinada para obedecer sem pensar. Quando copio e colo uma resposta pronta, e assumo a autoria dela sem sequer a ler, escolho me tornar uma fraude. Mas esse nem é o dano maior.

Sem desconsiderar que há coisas boas trazidas pela inteligência artificial, como seu emprego na descoberta de novos tratamentos de saúde, por exemplo, é preciso reconhecer a capacidade a ela atribuída de mutilar o pensamento crítico de uma inteira geração. Cada vez que atribuo à inteligência artificial a escrita de um texto, em lugar de eu mesmo me mergulhar no lago denso da escrita, eu perco. Perco a capacidade de andar com minhas próprias pernas, de respirar com meus próprios pulmões, de me manifestar no mundo com as marcas que me tornam o que sou.

Inteligência artificial: em muitos casos, melhor não a usar. Se a usar, use antes sua capacidade de pensamento crítico. A pressa da pressão para produzir, que faz usar a inteligência artificial, pode ser uma poderosa inimiga da inteira raça humana.

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