Cultura em tempos de obscurantismo

A palavra cultura aparece em textos latinos do filósofo romano Cícero (106-43 AC) com o sentido figurado de “cultura do espírito” (Cíc. Tusc. 2, 13, citado no Dicionário Latino-Português Garnier). Havia uma conotação religiosa nessa acepção da palavra. Raymond Williams, em seu texto intitulado Cultura (1992 : 1-117), examina essa acepção, bem como as origens e o desenvolvimento do termo que continuamos a usar para nomear a “configuração ou generalização do espírito que informava o modo de vida global de determinado povo” (p.10). O autor destaca, dentre a gama de significados do termo, “(i) um estado mental desenvolvido (…), (ii) os processos desse desenvolvimento – como em interesses culturais, ou atividades culturais, até (iii) os meios desses processos” (p. 11).

Ao tratar das relações entre cultura e mercado, Williams aborda a questão do utilitário em oposição ao artístico. A função econômica da cultura nas questões de mercado está relacionada com as “distinções convencionais entre artesão, artífice e artista” (pag. 48). As produções desses profissionais podem pender para o utilitário ou para o artístico. A marca do capitalismo sobre as culturas parece ter produzido uma inversão de valores. Sabe-se que os gregos antigos atribuíam grande importância ao culto da mente, e seus filósofos antigos continuam a ser estudados. Para os judeus antigos, coisas espirituais e práticas religiosas tinham primazia, enquanto as coisas “meramente úteis” ocupavam lugar secundário. Para o mundo moderno ocidental, parece válido argumentar que a produção de artesãos, artífices e artistas deixa o “meramente utilitário” para se tornar o “útil”, e o “artístico” para se tornar o “meramente cultural”. Em outras palavras, as coisas práticas, úteis, mas corriqueiras, têm precedência. A cultura da mente e do espírito, que inclui a arte, ocupa agora lugar secundário.

Naturalmente, o acima é uma generalização que faço. Williams (p.72) registra similar “generalização e desenvolvimento crescentes da ideia de que a prática e os valores da arte são desprezados pelos valores dominantes da sociedade moderna, ou devem ser distinguidos deles, ou são superiores ou hostis a eles”. As ideias que fomentaram essa generalização registrada por Williams surgiram “a partir de fins do século XVIII” (p.73), período marcado, entre outras coisas, pela revolução industrial e por ideias pré-capitalistas. Ainda que se tenha de tomar cuidado ao interpretar generalizações, a pressão de modelos econômicos sobre a cultura não pode ser ignorada. Os desenvolvimentos mais recentes na cultura ocidental, particularmente, parecem reforçar a generalização em pauta.

O texto de Williams, publicado primeiro em 1981, não poderia prever que a revolução tecnológica teria profundas implicações na cultura. Desde então, a informação se tornou muito mais acessível, com o advento da Internet. É irônico que na era da informação uma maré de anti-intelectualismo e desinformação assole com força surpreende culturas ao redor do mundo. No Brasil, uma cruzada do governo contra a cultura, numa ofensiva contra cursos em áreas de ciências humanas e contra as universidades públicas em geral, é apenas um desses desenvolvimentos de retrocesso ao obscurantismo.

Que a cultura, no sentido de cultivo da mente e do espírito, nos habilite a rechaçar tal retrocesso.

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Obra citada

WILLIAMS, R. Cultura. Trad. Lólio Oliveira. Seg. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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