O Bicho

O Bicho

“Eu não sou um rato”, diz não muito convincentemente o roedor a si mesmo. Não importam os sinais, evidências tangíveis, a pedrada no olfato. “Não, eu não sou um rato.” Os movimentos tardios e imprecisos, as respostas lentas, um fugir da morte sem mudar o passo…, qual rato se porta entregue à lâmina, senão aquele que por ela foi colhido? Não um rato, não um bicho tão astuto, de sentidos aguçados, engenhosidade sem cálculo. Cálculo mesmo, só aquele no olfato.

O bicho que sou é outro. Não sei qual sou, mas não um rato. Um bicho que olha sem agir, um que mora em casulo. Vê tudo vestido em camisa de força, sem forças pra mover um músculo. Um bicho fraco de feição, de olhos embaçados, esbugalhados e tristes. Não sobe em árvores, não escala montanhas, nada nada em rio algum, apenas boia em Rio de Janeiro Verde. Oh bicho feio, feito faísca de foice e faca.

Que bicho é esse de verso na panturrilha? O bicho da ilha. O coró mor da casca do galho seco. Um sem tino, sem nexo, sem fronte nem testa, e fresta na nuca. Que festa! Dos calcanhares lhe calham narinas. As orelhas recusam sons, as dragas de luz em negros olhos assombram assombrações. Que bicho? Qual bicho? Que traço sarcástico, sacana, tomba o lombo no tombo mas não cai do pé na lama? Tem gosto amargo, tem bílis na boca, tem fel infeliz.

Um bico torto tem o bicho quase morto. Mira aqui, atira acolá, papo vazio. Que bicho, que bicho, hein? Olha aqui e diz pra mim, que bicho? Um que revolta entranhas em ondas de náu-seas. Não olha, nem vê, não ouve, nem lê. A cabra cega, os lobos somem, que bicho? Um bicho pretérito, partido de carcaça partida. É isso, é isso: carniça. É esse o bicho, e fim da missa.

Wisley Vilela


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