A história da tradução no Brasil ao longo dos séculos – Resenha

O capítulo 19 de Um Atlas Mundial da Tradução, volume 145 da Benjamins Translation Library trata da história da tradução no Brasil ao longo dos séculos: em busca de uma tradição. Os autores Dennys Silva-Reis (Universidade de Brasília) e John Milton (USP) procuram fazer uma revisão da história da tradução e da interpretação no Brasil desde o século XVI até os tempos atuais.

Por história da tradução os autores referem ao estudo da tradução no tempo, em três níveis: “o agente da tradução, as obras traduzidas e o fazer da tradução analisado e demonstrado diacronicamente”. Eles sugerem a divisão da história da tradução no Brasil em tradução oral (interpretação) e escrita.

A história da tradução no Brasil começa, por motivos óbvios, com a chegada dos colonizadores no século XVI, quando os chamados Línguas desempenhavam o papel de mediadores linguísticos entre nativos e colonizadores. Os Línguas eram compostos por lançados e filhados. Os lançados eram criminosos portugueses, ou náufragos, ou tinham sido banidos e soltos em terras colonizadas para aprender a língua local e servir como intérpretes para as autoridades coloniais portuguesas. Os filhados eram nativos que haviam sido raptados e levados a terras estrangeiras para assimilar a língua e os costumes do colonizador.

A dominação religiosa idealizada pelos colonizadores tornava necessárias a tradução e a interpretação. Muitos sacerdotes católicos de diferentes ordens se estabeleceram no Brasil e aprenderam o tupi com o fim de traduzir os ensinos religiosos para os nativos. O texto A suma da doutrina cristã na língua tupi foi a primeira tradução a ser publicada pelo jesuíta João Navarro, em 1557.

PARADIGMA TRADUÇÃO-REDUÇÃO

O primeiro paradigma da história da tradução brasileira é o da tradução-redução, cuja criação os autores atribuem ao sacerdote jesuíta José de Anchieta. Conceitos religiosos alheios à cultura indígena e representados por termos como Diabo, Deus, pecado, céus, inferno, confissão e comunhão, foram adaptados para corresponder a termos equivalentes em tupi. O objetivo desse paradigma não foi vencer a diferença cultural que impedia uma tradução exata, mas transmitir tanto quanto possível da mensagem cristã na língua mãe dos nativos.

Durante o século XVII, a ocupação de terras brasileiras pelos franceses, holandeses, as incursões espanholas na América do Sul, e a chegada de escravos trazidos da África transformaram o Brasil em terra multilíngue. Nesse contexto, a Coroa portuguesa tomou medidas para treinar nativos na construção de fortes e desenvolvimento de artilharia. Mais traduções para tais treinamentos foram necessárias. Mais livros foram distribuídos, embora os autores pontuem que poucos leitores havia no Brasil do século XVII.

PARADIGMA TRADUÇÃO-APROPRIAÇÃO

O segundo paradigma da história da tradução no Brasil foi o da tradução-apropriação, iniciado por Gregório de Matos. O poeta usou a imitação como base para sua poesia, incorporando versos de outros poetas em seus versos. Alguns consideram plagiária a poesia de Gregório de Matos, ao passo que outros afirmam que ele dialogou com outros poetas. Note-se que o conceito de autoria e de plágio que se tem hoje é relativamente recente e, portanto, era desconhecido dos autores do século XVII.

PARADIGMA TRADUÇÃO-REVOLUÇÃO

Durante o século XVIII, a produção cultural das cidades ricas em outro ficou conhecida como arcadismo. Muitos dos autores arcadistas eram também tradutores. Esses autores e suas traduções introduziram ideias revolucionárias, particularmente as provenientes do iluminismo francês. As imposições da Coroa portuguesa em termos de legislação e tributos abusivos contribuíram para tornar desejáveis as ideias revolucionárias. Essas, por sua vez, levaram a rebeliões e a movimentos de resistência às autoridades portuguesas.

Foi no século XVII que os jesuítas foram expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal. Com isso, a igreja perdeu sua posição de monopolizadora das instituições de ensino. A Coroa assumira a responsabilidade pelo ensino de latim, grego, retórica, leitura, escrita, cálculo e filosofia. Medidas rígidas no sentido de controlar a produção escrita e o uso da língua, uma delas a determinação do Marquês de Pombal de que nenhuma outra língua seria usada no ensino além do português, sob pena de morte.

O paradigma da tradução-revolução fomentou a distribuição ilegal de traduções que contribuíram para moldar o conceito de nacionalidade. Com isso, desenvolveram-se novos tipos de conhecimento em muitos campos, instigaram-se muitos conflitos, rebeliões, guerras e batalhas. A tradução foi revolucionária também no sentido abrir novas perspectivas ao pensamento.

O século XIX na história da tradução no Brasil

Com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, foi suspensa a censura. Naquela época foi instituída a Imprensa Régia e um grande número de casas publicadoras foi estabelecido. A leitura de livros e periódicos se tornou comum no Brasil. Os autores explicam que, nesse período antes da adoção dos direitos autorais internacionais, o tradutor era considerado perante a lei como autor do texto em português. Um marco importante foi a institucionalização da profissão de intérprete, no século XIX.

Os autores afirmam que nas áreas de tradução e interpretação, o século XIX foi um período de grande produção e disseminação de conhecimento. As profissões de tradutor e intérprete contribuíram significativamente para o desenvolvimento econômico, cultural, social e político do Brasil.

Séculos XX e XXI

No século XX o Brasil deixou de ser uma país estritamente agrícola para se tornar um país industrializado e exportador de bens. As mudanças no governo, de República para Ditadura, e depois para a democracia, o impacto das duas guerras mundiais, dentre outros fatores, tiveram grande importância no mercado de tradução brasileiro.

Monteiro Lobato (1885-1948) teve papel expressivo no mercado editorial nacional. Em 1920, mais da metade de todas as obras literárias publicadas no Brasil partiram da Monteiro Lobato e Companhia. Ele traduziu 82 obras para o português, a maioria delas originalmente em inglês, algo que desafiou [e venceu] a dominância da cultura francófona no mercado editorial brasileiro.

As movimentações nos poderes políticos foram sentidas no exercício da profissão de tradutores e intérpretes, ora com acréscimo, ora com redução na demanda por serviços. Os autores afirmam que o apoio americano ao golpe militar de 1964 teve desdobramentos que afetaram a seleção de livros didáticos usados nas escolas a partir de 1967, com a assinatura do acordo MEC-SNEL-USAID. Entre 1967 e 1970, foi impresso um total de 51 milhões de cópias traduzidas de livros originalmente produzidos nos Estados Unidos para serem usados no sistema educacional brasileiro. Segundo Milton, as futuras classes técnicas e administrativas brasileiras seguiriam o modo americano de pensar e o American Way of Life (modo americano de vida), e essa influência considerável existe até o presente.

Os autores examinam a influência do cinema e da televisão na geração de demanda por tradução, desde o início do século XX até a atualidade. Pontuam que o primeiro filme dublado foi Branca de Neve e os sete anões, em 1938. Lembram que um decreto do presidente Jânio Quadros, em 1962, exigia que toda produção cinematográfica em língua estrangeira fosse dublada, resultando na ampliação do mercado de tradução.

No que diz respeito aos Estudos da Tradução, os autores salientam a importância dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos na introdução dos Estudos da Tradução nas universidades brasileiras. De um começo pequeno no final dos anos de 80, essa disciplina vem ganhando força e importância em várias universidades brasileiras.

Os autores afirmam que relativamente poucos que se formaram em cursos de tradução exercem a profissão. Dentre os fatores contribuintes para esse fato, apontam que todos os cursos de tradução e interpretação nas cerca de 25 instituições brasileiras estão atrelados aos cursos tradicionais de humanas, com pouco ou nenhum contato com áreas técnicas. Em resultado, a maior parte dos tradutores profissionais é formada em outras áreas, segundo pesquisa da ABRATES citada pelos autores.

Comentando sobre áreas em que se poderia prever crescimento no mercado de tradução e interpretação, os autores citam o afluxo de imigrantes do Haiti, da Bolívia e da Venezuela, como fator cuja influência há de se verificar com o tempo, além dos desenvolvimentos na economia. Ao falar sobre a serviços de interpretação e tradução em tribunais, outra área para a qual inexiste treinamento, afirmam que tradutores juramentados ou professores universitários de línguas são convidados a oferecer seus serviços de graça. Eles concluem por dizer que “parece que o mito de que qualquer um que conheça uma língua estrangeira e tenha certo nível de educação pode atuar como intérprete é ainda muito prevalente”.

PARADIGMA DA TRADUÇÃO-INCLUSÃO

Ao passo que a perspectiva teórica da tradução goza de muito maior visibilidade agora, muito precisa ser feito para melhorar o ensino da tradução nas universidades brasileiras e direcioná-lo para o mercado profissional. Afirmam os autores que isso está sendo feito, até certo ponto, através do ensino de áreas antes marginalizadas tais como a língua de sinais, dublagem, localização, legendagem, audiodescrição e o estudo e propagação das línguas indígenas, e que isso ajuda na construção do paradigma da tradução-inclusão nos séculos XX e XXI.

Os autores concluem destacando o importante papel que teve a tradução desde o século XVI até os tempos atuais em ajudar o Brasil a se tornar mais desenvolvido, globalizado, dinâmico, com uma miscigenação de culturas, povos e conhecimentos.

Informação bibliográfica |Google Books
A World Atlas of Translation
Título A World Atlas of Translation
Volume 145 - Benjamins Translation Library, ISSN 0929-7316
Editores Yves Gambier, Ubaldo Stecconi
Editora John Benjamins Publishing Company, 2019
ISBN 902720215X, 9789027202154
501 pages

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