Linguagem Inclusiva e Gênero Neutro no Português do Brasil

A sociedade constrói a linguagem ou a linguagem constrói a sociedade?

Nem bem uma coisa nem bem outra. A sociedade constrói a linguagem e a linguagem constrói a sociedade. A desigualdade e as injustiças são características ubíquas da sociedade chamada “civilizada”, o que se percebe já no emprego do adjetivo “civilizado”. O civilizado apenas existe em oposição ao bárbaro e suas derivações. Essa desigualdade entre “civilizado” e “bárbaro” é injusta na medida em que civilizado é próprio, mas bárbaro é sempre o outro. Por exemplo, as expedições de pilhagem que partiram da Europa nos séculos XV e XVI, em direção ao “Novo Mundo”, levavam bárbaros cruéis e assassinos que dizimaram sociedades muito mais humanizadas e intelectualmente desenvolvidas do que eles jamais seriam. A única superioridade desses piratas uniformizados estava na força bruta de seus instrumentos de guerra. Não foi um descobrimento do “Novo Mundo”, foi encobrimento e destruição. No entanto, a história que os livros contam é outra.

A maneira em que percebemos o outro se manifesta em nossa linguagem. É evidente que há muitos traços conjugados na formação de uma imagem perceptível do outro. O exemplo da invasão e saque do Novo Mundo, acima, reforça o argumento de que o traço predominante na percepção do outro é o poder. Quem tem poder, algo geralmente dissociado de valores como justiça e igualdade, mas frequentemente associado a abusos, é capaz de projetar com a linguagem uma versão palatável de seus atos abomináveis. O poder edita histórias. A história do “descobrimento” do Brasil é uma versão editada, pelo poder das armas, da história de invasão de terras, de extermínio de povos indígenas e de bárbara escravização de seres humanos para fins inadmissíveis em qualquer sociedade civilizada que merecesse essa qualificação.

Uma rápida espiada no léxico da língua portuguesa basta para assimilar que a percepção do outro, sempre sujeita às questões de poder, entra na língua e se propaga através da metáfora. Um exemplo disso seria a palavra “denegrir”. Alguém que fala mal de outrem macula a reputação dessa pessoa pelo uso da palavra. “Denegrir” é uma estratégia baixa frequentemente adotada por políticos, quando difamam e acusam seus oponentes. Não é preciso muito esforço para demarcar a relação entre a cor preta e o verbo “denegrir”. Diferentemente do que talvez tenha ouvido sobre a origem desse verbo, “denegrir’ vem do latim “denigrare“, um verbo transitivo que significa empretecer, tornar negro, atacar, difamar. A metáfora da cor é assim usada para representar um conjunto de características atrelado a uma valoração moral negativa. Essa percepção linguística é injetada em nossas mentes desde muito cedo, mesmo em cartoons infantis com teor semelhante ao da imagem abaixo. Felizmente, há um movimento linguístico de reparação coerente com o fato de que nenhuma cor de pele é intrinsecamente boa ou ruim. Entretanto, há muito a ser feito. O que se construiu e se consolidou ao longo de tantos séculos não vai simplesmente ruir de uma hora para outra.

White Angel vs. Black Angel
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É muito importante que as vozes periféricas sejam projetadas e que suas histórias, ou seu ponto de vista sobre a história, sejam conhecidas. Enquanto não houver igualdade de projeção de vozes com percepções diferentes, aberrações preconceituosas e prejudiciais, tais como o exemplo em “denegrir”, acima, terão alojamento confortável na linguagem, particularmente em seu aspecto lexical.

Linguagem e sociedade estão em uma relação dialética constante. Isso significa que sociedade e linguagem se moldam mutuamente o tempo todo. Esse processo é muitíssimo complexo porque nem linguagem nem sociedade são entes uniformes e contidos em si mesmos. Novamente, grande parte dessa não uniformidade resulta da disparidade na detenção de poder. Além disso, fatores espaciais e temporais adicionam complexidade às ações e reações entre sociedade e linguagem.

A sexualidade está entre os fatores mais destacados, é um dos pilares, do que normalmente se entende por “sociedade”. Sendo assim, é de se esperar que a sexualidade ocupe espaço importante no uso da linguagem para a criação e a descrição das identidades própria e do outro. Na linguagem, cabe ao gênero a função de espelhar a sexualidade dos seres vivos. É preciso notar que, em acepção mais ampla, gênero gramatical contempla outras funções, tais como determinar se um substantivo é contável ou não, se animado ou inanimado e que, em muitos casos, gêneros “feminino” e “masculino” nada têm que ver com sexualidade. Por exemplo, a palavra “mesa” é do gênero feminino, ao passo que “banco” é masculino. Mas deve ser evidente que essa determinação não possui qualquer vínculo com sexualidade.

Díspar do latim, língua da qual procede, o português não possui um gênero neutro. A rigor, os entes (pronomes, substantivos e adjetivos) caracterizados pelo gênero na língua portuguesa são binários, a saber, feminino OU masculino. Essa característica da língua portuguesa cria um problema para pessoas que não se identificam com uma dessas duas possibilidades. Com um pouco de empatia, deve ser possível perceber ao menos parte da frustração decorrente da constatação de que a própria língua-mãe é insuficiente para suprir a demanda básica por identidade.

Nos últimos anos, o ativismo linguístico propôs diferentes soluções para a questão de identidade de gênero. Soluções como a substituição da desinência de gênero pelos caracteres @ (arroba) ou _ (underline) podem funcionar até certo ponto na escrita, mas esbarram na impossibilidade de prática vocal, posto que esses caracteres não têm correspondência fonêmica. Outra proposta que tem recebido certo grau de aceitação, em nichos específicos, é o uso do “e” em lugar da desinência de gênero. Essa alternativa resolve o problema da prática vocal e parece funcionar adequadamente na escrita. Ainda assim, parece que remanescem dificuldades e obstáculos ao seu uso em escala abrangente.

O primeiro problema remete à proposta do esperanto, uma língua fabricada, como língua universal, proposta que nunca foi aceita ao ponto de uso em produção. A língua é um organismo vivo e sensível às necessidades de seus falantes. Historicamente, mudanças na língua levam décadas, ou mesmo séculos, para ocorrer. Pesquisadores frequentemente detectam variações linguísticas projetadas por fatores sociais, geográficos e temporais. A variação pode ou não levar à mudança linguística. De modo geral, parece seguro arguir que dificilmente a pesquisadora que detecta uma variação estará viva para constatar a mudança linguística resultante, quando e se esta se consolidar. O processo lento pode não ocorrer dentro da janela de vida de uma geração. Assim como a artificialidade do esperando ainda bloqueia seu uso, é de se esperar que a adesão a propostas artificiais, como o emprego de substitutivos à desinência de gênero, seja insuficiente para causar uma mudança linguística.

É verdade que houve governos tentaram moldar a sociedade para seus fins políticos através de decretos linguísticos. A queda em desuso da língua geral, no Brasil, foi provocada por decreto do Marquês de Pombal, em 17 de agosto de 1758. No século XX, no final da década de 1930, o governo Vargas determinou a supressão de outros idiomas nas escolas brasileiras, proibiu que a menores de 14 anos fossem ensinados idiomas estrangeiros e, em 1939, vetou o uso de idioma que não o português, em público. Será que uma medida autoritativa semelhante não sanaria o problema da identidade gênero na língua portuguesa?

As intervenções autoritárias do Estado Novo e do Marquês de Pombal tinham propósito político de impactar a conformação da sociedade pelo uso da língua. O cenário em que a identidade de gênero fosse introduzida artificialmente por medida autoritativa, para contemplar uma estrutura não binária, teria a diferença, em relação às ações de Vargas e Pombal, de tentar alterar a estrutura da língua. Seria como se Vargas e Pombal tivessem interferido na sociedade para proteger a língua e, consequentemente, seus interesses políticos. Por outro lado, no caso da intervenção sobre a identidade de gênero, a direção seria oposta, visto que haveria uma operação na língua para atender a demanda de uma parcela, ainda que expressiva, de seus falantes. Embora isso em nada detraia da importância da causa de reconhecer o direito de todos à identidade pela língua-mãe, essas diferenças certamente teriam impacto sobre os resultados da empesa de mudar a língua por decreto.

O segundo problema está intimamente ligado ao precedente. O emprego de “es” em lugar da desinência de gênero como elemento inclusivo ainda não soa natural, ao que parece (pois é percebido como excessão), para a maior parte dos falantes do português. Para ilustrar, em um seminário acadêmico sobre linguística aplicada, de que participei em 2020, nenhuma das varias pessoas que usaram a linguagem inclusiva com a forma “todes” conseguiu ser consistente até o fim de sua fala. A estrutura binária de gênero no português é tão arraigada que não pode ser contida. A oposição das ocorrências de “todes” com ocorrências de substantivos, pronomes e adjetivos marcados pelo método “tradicional” parece enfraquecer o argumento em favor do gênero neutro ou do inclusivo correspondente. Se não consigo ser consistente, não é natural para mim e não soa natural para minha audiência. Então, parece que estou defendendo algo além de minha capacidade, que estou impondo a outros uma carga que eu mesmo não sou capaz de suportar.

Por fim, embora “e/es” tenha correspondência fonêmica e melhores condições de prosperar na escrita e na fala, é preciso lembrar que em português esses fonemas são frequentemente masculinos. É o caso dos pronomes “eles” e “deles”. Embora isso não impeça a exploração da possibilidade de uso de “e/es” como marcador inclusivo de gênero, parece razoável concluir que seria sim um obstáculo importante.

A solução perfeita para o problema da inclusão do não binário na identidade de gênero, se é que solução existe, ainda não foi encontrada. A solução existente e adotada pela norma culta é a atribuição de dupla função ao marcador desinencial de gênero masculino plural, como no caso de “todos”. Essa também não é perfeita por estar associada às raízes patriarcais de uma sociedade opressora, injusta e desigual.

Até agora, nenhum cenário parece suficientemente bom. A mera busca de uma solução atesta os esforços de muitos para nos tornarmos uma sociedade mais justa, menos desigual, mais humana, menos preocupada com o próprio e mais interessada no bem-estar do outro, independentemente de quem este seja, de onde viva e de como se perceba.


Comments

2 respostas para “Linguagem Inclusiva e Gênero Neutro no Português do Brasil”

  1. Avatar de José Bento
    José Bento

    Não tome isto como uma recriminação ao seu modo de pensar, mas apenas como um contraponto calcado na realidade humana. Sociedade mais justa e mais fraterna é o desejo de toda ideologia, por mais escandalosa que esta possa parecer aos olhos de de seus opositores. Sociedade não-hierarquizada é uma utopia, pois sempre haverá quem manda vs. quem obedece. A novilíngua de Orwell é uma constante em toda a história da Humanidade: sempre que uma classe assume o Poder, trata logo de fixar os parâmetros de linguagem a serem aceitos, tolerados ou rejeitados.
    Estes princípios, que são eternamente humanos, são o fator que descredibiliza a própria ideologia, qualquer que seja esta. Não é pecado lutar pelo que se acredita, mas é pecado achar que aquilo em que se acredita salvará a humanidade dos pesadelos de seus erros e defeitos, ou até mesmo ameniza-los de alguma forma. Não é assim, simplesmente porque a humanidade não é dessa natureza, benevolente. A benevolência só se aplica quando há interesses em jogo, e aqui mora o perigo.

    1. Olá, José!

      Obrigado por seu comentário. Excelente contraponto!

      Parece que o real está para o distópico como o ideal para o utópico, isso na linguagem e em toda forma de relação humana. Se o ideal se torna realidade, o poder de dominar e impor logo degrada aquele ideal em distópico. O ciclo se repete, como em Animal Farm, de George Orwell.

      A imposição de uma linguagem inclusiva, particularmente a gênese forçada do gênero neutro em português, concordo com você, não tem grandes chances de ter êxito melhor.

      Acredito que uma educação inclusiva, igual para todas as pessoas, independentemente da camada social de onde venham, teria melhores condições de tornar o mundo um lugar menos hostil. Ainda assim, isso também parece utópico.

      Obrigado pela contribuição!

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