Paradigmas da tradução nas décadas de 1980-90

Os Estudos da Tradução passaram por viradas importantes nas décadas de 1980-90. Depois de comentar (1) o papel decisivo de James Holmes nos Estudos da Tradução, (2) a Manipulation School (que argumenta que toda tradução implica certo grau de manipulação do texto fonte para um propósito específico), (3) a Skopos Theory (que postula que tradutores e intérpretes devem dar precedência à função do texto na cultura alvo), Snell-Hornby examina (4) a “desconstrução, ou o enfoque canibalista,” aplicada à tradução.

A desconstrução, ou o enfoque canibalista

Nos anos 60, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos elaboraram um “modelo de tradução do Terceiro Mundo” usando a metáfora do canibalismo, no sentido de absorver e reproduzir o outro, enriquecida por elementos indígenas. O canibalismo passou a ser usado como metáfora para reação contra dominação cultural e, daí, em uma filosofia da tradução que haveria de se vestir de novo significado na teoria pós-moderna da tradução.

Snell-Hornby argumenta que canibalismo tem algo de brutal e determinista, e que antropofagia é um termo médico obscuro. Por isso, a autora explica que Rosemary Arrojo propõe a metáfora do palimpsesto para o papel dessa tradução orientada para a cultura-alvo, e que “desafia a hierarquia [tradicional] de poder entre “texto original” e tradução”.

Ao invés de considerarmos o texto, ou o signo, como um receptáculo em que algum conteúdo possa ser depositado e mantido sob controle, proponho que sua imagem exemplar passe a ser a de um palimpsesto. Segundo os dicionários, o substantivo masculino palimpsesto, do grego palímpsestos (raspado novamente), refere-se ao “antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou três vezes (…) mediante raspagem do texto anterior.

Rosemary Arrojo

O ponto de partida de Rosemary Arrojo, segundo Snell-Hornby, foi o enfoque desconstrucionista de Jacques Derrida. Para Derrida, “um texto não pode ter um sentido fixo ou pronto, e cada nova leitura resulta em uma tradução”. O que se desconstrói é a ideia fidelidade ao texto-fonte. Snell-Hornby argumenta que Rosemary Arrojo considerava as teorias tradicionais da tradução inadequadas, e que “o texto é resultado da interpretação individual do leitor”.

Os dois ramos da mudança de paradigma nos Estudos da Tradução, a Escola da Manipulação na tradução literária com escritos em inglês e as escolas funcionais com a maior parte dos escritos em alemão, tinham em comum serem por autodefinição meta-orientados e funcionais. Dito de outro modo, rejeitavam o texto-fonte como autoridade suprema, a crítica de tradução em geral e as instituições de formação de tradutores com seu enfoque normativo e avaliativo.

Ao falar sobre a retratação em um postscript de Vermeer sobre uma afirmação de Toury, Snell-Hornby argumenta que a linguagem e a apresentação acadêmicas dos Estudos da Tradução, além das diferenças de objetivo e terminologia usada, provocam mal-entendidos entre os estudiosos do assunto e o tornam quase ininteligíveis para o leigo. “Este problema está relacionado com as tradições e culturas acadêmicas e é um problema sério para uma disciplina como os Estudos da Tradução cujo objetivo é a comunicação”.

A interdisciplina nos anos 1990.

O capítulo três começa por salientar os efeitos favoráveis da queda da cortina de ferro na Europa sobre o desenvolvimento dos Estudos da Tradução. Snell-Hornby cita o retrospecto de Kussmaul sobre as Conferências de Tradução de Viena: “Algo especial sobre as Conferências de Tradução de Viena foi que as trocas sociais criaram novas ideias para a disciplina. (…) Uma ideia emergiu e se tornou cada vez mais clara: a disciplina relativamente nova dos Estudos da Tradução deveria ser melhor conhecida do que era até aquele momento”. Um resultado das conferências e suas trocas foi o Congresso de Estudos da Tradução, em setembro de 1992, com a fundação da Sociedade Europeia para Estudos da Tradução (EST).

A definição do perfil dos Estudos da Tradução como disciplina foi a questão que surgiu naturalmente nesse cenário fértil. Snell-Hornby argumenta que tal perfil deveria incluir estudos de interpretação, terminologia, tradução auxiliada por máquina, semiótica, etnologia, sociologia e psicologia: uma interdisciplina. A autora cita Klaus Kaindl para explicar a noção de interdisciplinaridade: “Interdisciplinas não constituem uma área separada de estudos, mas um campo aberto ao qual várias disciplinas têm acesso”. Não se trata de uma “terra de ninguém”, explica Snell-Hornby, mas de algo “qualitativamente diferente dos ingredientes de que se formou”.

Snell-Hornby comenta aspectos interessantes da terminologia a ser usada nos Estudos da Tradução. A discussão passa pela escolha dos termos norma (a regularidade de comportamento em situações recorrentes do mesmo tipo), convensão e regra. O termo equivalência foi mantido por Toury sem o sentido de prescrição. Aceitabilidade e adequabilidade também foram usados por Toury, Reiss e Vermeer, com sentidos levemente diferentes.

O “termo meme [uma unidade de informação na mente de uma pessoa] foi introduzido nas discussões sobre teorias da tradução em 1997″ como paralelo ao termo gene para descrever a evolução do fenômeno cultural”. Os tipos de memes variam. Podem ser uma ideia, um hábito, uma preleção, e são percebidos e reproduzidos por outros indivíduos. O conceito de norma é um exemplo de meme da tradução, que inclui padrões profissionais de integridade completude, que estão ligados ao domínio da ética da tradução.

Fidelidade vs Lealdade

Falando sobre ética da tradução, Snell-Hornby cita a norma da responsabilidade, formulada por Chesterman. Segundo essa norma, por uma questão de lealdade o tradutor é responsável perante o autor, o contratante da tradução, perante si mesmo e perante o prospectivo leitor. O termo lealdade substitui o conceito fidelidade ao texto-fonte. Segundo a autora, Toury rejeitou o termo lealdade conforme proposto por Chesterman por acreditar que as “traduções são fatos de um único sistema: o sistema alvo”.

Além da linguagem

Na seção “além da linguagem”, a autora comenta diferentes tipos de recipientes para a comunicação do texto. Depois de comentar estágios anteriores de categorização da comunicação “além da linguagem”, Snell-Hornby aponta as quatro classes de textos que dependem de elementos não-verbais.

  1. Textos multimedia (audiovisual) são transmitidos por meio de mídia técnica e/ou eletrônica envolvendo tanto imagem quando som;
  2. Textos multimodais compreendem diferentes modos de expressão verbal e não-verbal contendo som e imagem, como em drama, ou ópera.
  3. Textos multisemióticos são aqueles escritos para serem falados, em vez de impressos.

Esses tipos de textos, assim como a maior parte da linguagem não-verbal, recebiam pouca ou nenhuma atenção dos Estudos da Tradução boa parte dos anos 1980.

A autora conclui a seção do capítulo falando do abuso contra tradutores de textos para dublagem e legendagem. A competição entre tradutores no mercado de dublagem aumentou, os preços caíram e aumentaram as pressões nos prazos.

Acrescento que as condições de trabalho de tradutoras/es propiciam a rapinagem por parte dos contratantes e por parte de profissionais de tradução que, ao se sujeitarem a condições de mercado injustas, sabotam seu próprio meio de subsistência.

Sobre o texto acima: resenha de The Turns of Translation Studies: new paradigms or shifting viewpoints? (Mary Snell-Hornby). Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2006, pp. 60-90.

Bibliographic information (Google Books)

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TitleThe Turns of Translation Studies: New Paradigms Or Shifting Viewpoints?
Volume 66 of Benjamins translation library
Volume 66 of Benjamins translation library. EST subseries
AuthorMary Snell-Hornby
PublisherJohn Benjamins Publishing, 2006
ISBN9027216738, 9789027216731
Length205 pages
SubjectsLanguage Arts & Disciplines › Linguistics › General

Language Arts & Disciplines / Linguistics / General


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