Tradução de impressão visual e prazer físico para música

Como vimos, ao apresentar a obra Pacific 231 como a “tradução de uma impressão visual e de um prazer físico através da construção musical” (p. 49), Arthur Honegger experimentava verter grandezas de naturezas diferentes que não se regem pelas mesmas regras (p. 22). Em uma abordagem da proposição de Honegger à luz do modelo triádico do signo, o “objeto” seria o fenômeno, ou a realidade primária, a ser representado, ou expresso. O “representamen” seria a obra de arte como manifestação daquele “objeto”. Um “interpretante” ideal seria capaz de identificar a “relação exata” (p. 23) entre os dois primeiros elementos.

A sinalização luminosa de trânsito tem sido usada com frequência para ilustrar a relação entre “objeto”, “representamen” e “interpretante”. A ordem de parar o carro (objeto) é representada pela luz vermelha no semáforo (representamen). O motorista (interpretante) é capaz de perceber visualmente o comando de parar ao estabelecer a relação convencionada entre “objeto” e “representamen”. A proposição de Honegger sugere a utilização de formas adicionais de expressão para transmitir o mesmo significado. No caso do comando de parar o carro, o par análogo do sinal luminoso na cor vermelha seria o sinal sonoro de dois silvos breves, considerando a legislação de trânsito brasileira. Em lugar do semáforo, um guarda de trânsito; em vez da percepção visual da luz vermelha, a percepção auditiva do soar de um apito. Nesse caso, pode-se dizer que há uma relação exata e, até certo ponto, reversível entre os elementos.

Às relações de sentido entre obras de arte pertencentes a diferentes esferas, tais como entre literatura e teatro, música e cinema, dança e pintura, poder-se-ia estender o mesmo raciocínio. A construção de sentido nas artes, excetuando-se a literatura, não se utiliza de “semas” como blocos mínimos e não obedece a uma convenção simbólica, como ocorre com as palavras. A comunicação do sentido nas artes transcende palavras. Assim, a exatidão que Honegger julgava existir nas relações de sentidos entre as artes dificilmente poderia ser encontrada nos mesmos moldes verificados no domínio da descrição linguística.

Figura 10 – Adaptação do modelo peirceano do signo à proposição de Honegger

A Figura 9 demonstra uma possibilidade de aplicação do modelo peirceano do signo em que um objeto primário, tal como o conceito de terror na cena do chuveiro, em Psicose, de Alfred Hitchcock, poderia ser paralelamente representado no cinema e na música, e decodificado por um “interpretante”34F[1]. Tal decodificação implica direcionalidade reversível que, por sua vez, requer a identificação de elementos e caraterísticas comuns a ambos os códigos. Entretanto, direcionalidade reversível não subentende reversibilidade tradutória. A reversibilidade, em tese, seria possível para alguém que tivesse conhecimento de todas as etapas e de todos os fatores na seleção das camadas traduzidas.

A reversibilidade não pode ser tomada como fator cartesiano caraterístico da tradução. Em certo sentido, nenhuma tradução é completamente reversível. Alguém que retro traduzisse O Inferno, de Dante Alighieri, do inglês do século 20 para o italiano do século 14, embora talvez pudesse recriar a obra com o conjunto semântico-sintático-lexical em que essa havia sido originalmente escrita, jamais poderia recriar o aspecto tempo-espacial do século 14. Sem isso, a obra não teria o mesmo sentido porque teria voltado a uma língua fora de seu tempo. Em outras palavras, nenhuma reversibilidade é perfeita.

A proposta de Honegger, com a obra Pacific 231, foi traduzir “impressões visuais e prazer (ou deleite) físico”, associados a uma locomotiva, em construção musical (HALBREICH, 1999, p. 351). Para atingir esse objetivo, Honegger selecionou as camadas de sentido nas impressões visuais de movimento de uma locomotiva e nas sensações de prazer físico de origem não especificada, mas também associadas à locomotiva. O prazer físico é uma manifestação de emoção. Podemos comunicar as emoções que sentimos em palavras, mas somente as percebemos em nós através das manifestações físicas de nosso próprio corpo. Usamos nosso conjunto lexical para descrever emoções. Esse conjunto, porém, tem eficiência limitada. Descrever a emoção da ira para alguém que nunca a tenha experimentado em seu próprio corpo seria como descrever a cor roxa para alguém que é cego desde o nascimento. As artes, especialmente a música, são frequentemente descritas como expressão dos sentimentos que não se pode traduzir em palavras. Patrick Juslin aborda a relação entre emoções e música, como veremos a seguir.


[1] Como explicado na página 58, Peirce define “signo como qualquer coisa que por um lado é determinada por um objeto e, por outro lado, determina uma ideia na mente de uma pessoa” (HARTSHORNE e WEISS, 1931, p. 2748). No caso das representações musical e visual da cena do chuveiro, o terror corresponde ao “objeto”; a película com a representação visual do quadro seria um representamen; a música de Bernard Herrmann também opera como representamen; o “ideia na mente de uma pessoa” seria o “interpretante”.