Terminologia para a tradução de recursos semióticos

Desenvolvendo “Sobre os Aspectos Linguísticos da Tradução” com base na teoria do signo, de Peirce, Roman Jakobson (1959) postula o que seria a primeira taxonomia da tradução nos tempos modernos. Nela, o autor distingue “três modos de interpretar o signo verbal: pode ser traduzido para outros signos da mesma língua, para outra língua ou para outro sistema não verbal de símbolos”23F[1] (ibidem p. 233, grifo nosso). Na sequência, Jakobson propõe as três categorias correspondentes aos três modos de interpretar o signo verbal: “tradução intralingual”, “tradução interlingual” e “tradução intersemiótica ou transmutação” (ibidem). Assim, pela taxonomia de Jacobson, o ponto de partida nas três categorias da tradução seria o “signo verbal”.

Dinda Gorlée argumenta que os termos originalmente empregados por Jakobson não contemplam “a tradução de signos não linguísticos em signos verbais e a tradução de signos não verbais por meio de outros signos não verbais” (GORLÉE, 2010, p. s.p. Nota 5.). Gideon Toury, citado por Gorlée (ibidem), parece não compreender o postulado de Jakobson sobre “modos de interpretar o signo verbal” (JAKOBSON, 1959, p. 233) como indicativo da obrigatoriedade de signo verbal ocupar a posição de código fonte.  Toury afirmou, em 1986, que a “tradução intersemiótica ocorre quando “os dois códigos são dois sistemas semióticos diferentes, quer um deles seja verbal, quer não”” (GORLÉE, 2010, n.p.). Embora Jakobson não seja restritivo, pois não declara categoricamente que o signo verbal tem de estar na posição de código fonte, Gorlée tem razão ao afirmar que os termos originais do postulado de Jakobson sugerem a necessidade do signo verbal como um dos códigos da tradução intersemiótica.

A meu ver, Jakobson vai além e explicita, embora não dite, que o código verbal deve ocupar a posição de código fonte, pois é este, segundo Jakobson, o código que recebe a interpretação por meio de outro código não verbal. Jacques Derrida, em seu ensaio Torres de Babel, entende a tradução intersemiótica no modelo de Jakobson como a “que interpreta, por exemplo, signos linguísticos por meio de signos não linguísticos” (DERRIDA, 2002, p. 23). Em outras palavras, a tradução é feita com o uso de recursos semióticos de sistemas não verbais a partir do “signo verbal” na posição de código fonte, ou vice-versa. Ao que parece, à época, Jakobson não tinha a preocupação de prever o surgimento de novas necessidades expressivas, particularmente as das interações interartísticas, que suscitariam a alteração no modelo de seu postulado, segundo o entendimento de Toury, cerca de vinte e sete anos mais tarde.

O termo “tradução”, como vimos, por causa de seu uso mais frequente no campo linguístico e de sua associação cristalizada ao sistema semiótico verbal, pode induzir à conclusão de que a “tradução intersemiótica” requer a presença de código verbal. O termo “intersemiótica”, por si só, nada contém que sugira tal ideia, pois apenas indica de modo genérico em que área a tradução ocorre. Posto que o sistema semiótico verbal esteja contido no conjunto dos sistemas semióticos, tanto a “tradução intralingual” quanto a “interlingual” seriam, em última análise, em sentido expandido, traduções intersemióticas (entre recursos semióticos de naturezas diferentes) ou intrasemióticas (entre recursos semióticos da mesma natureza).

Jakobson também chamou a “tradução intersemiótica” de “transmutação” (JAKOBSON, 1959, p. 233). O termo “transmutação” agrega as ideias de “movimento” e “mutação”, ao passo que difere de tradução por apagar as ideias de “trazer”, “conduzir”, “liderar” e “guiar”, presentes na forma verbal latina dūcō. Assim, ocorreriam na “transmutação” dois processos simultâneos: o de reposicionamento e o de mudança de um código semiótico para outro. O apagamento de dūcō, por sua vez, tira o foco do agente da tradução, colocando maior ênfase no processo do que em quem o conduz. Embora a consideração do emprego desses termos seja útil à compreensão dos processos que eles descrevem, é importante lembrar que não se trata de termos universais. Como vimos, o termo finlandês para “tradução” sugere o movimento de rotação em torno de um eixo, movimento tal que deixa mostrar o outro lado de um ente qualquer. É possível que um estudo sobre a abordagem de outras línguas ao que chamamos “tradução/traduzir” revele outros casos similares ao do finlandês, no exemplo citado.

Refletindo sobre o termo “tradução”, Gunther Kress defende o emprego de termos mais específicos para referir à tradução de recursos semióticos multimodais. O autor argumenta que “tradução é o termo usado para descrever mudanças relevantes em significado: através de gêneros, de modos, de culturas e de quaisquer combinações entre esses” (KRESS, 2010, p. 124). Em vista desse emprego genérico do termo “tradução” para nomear alterações na representação, Kress advoga o uso dos termos “transdução” e “transformação”, o primeiro para nomear o movimento entre modos semióticos e mudança de entidades, e o último para referir a movimentos intra modo semiótico com a “reordenação das entidades em um sintagma” (ibidem). Com base na proposta de Kress, a tradução de uma obra literária em cinematográfica, por exemplo, seria uma “transdução”, porque essa envolveria modos semióticos distintos. A tradução de uma pintura a óleo para a forma de grafite seria uma “transformação” porque tanto a obra em posição de código fonte quanto a em posição de código alvo estão compreendidas no mesmo sistema semiótico, a saber, o texto visual.

A proposta do termo “tradução multimodal”, derivado da teoria social-semiótica da multimodalidade, de Gunther Kress, tem sido aceita e o termo tem sido empregado com frequência na literatura. Como vimos no exemplo da tirinha de Quino (Figura 4), o termo “multimodal” considera o aspecto do texto composto a partir de diferentes sistemas semióticos. Em conjunto com o termo tradução, ele transmite a ideia de representar em um ou mais sistemas semióticos um texto produzido a partir de sistemas semióticos diversos. O termo “tradução multimodal” contempla o emprego simultâneo de elementos de mais de um código, ou sistema semiótico. Nesse respeito, tal termo parece se ajustar com propriedade à maneira composta em que as comunicações ocorrem no mundo contemporâneo. O termo “tradução intersemiótica”, conforme proposto por Jakobson, ainda que lhe escape do escopo inicial a tradução de texto em um sistema semiótico não verbal para outro sistema não verbal, parece suficiente, como tem sido por mais de seis décadas, para referir ao tipo de tradução que interessa como objeto de estudo neste trabalho. Por outro lado, o uso consistente desse termo primariamente associado à presença de texto do sistema semiótico verbal como um elemento do par em tradução acrescenta certo grau de difusão a essa terminologia. No que diz respeito à proposta terminológica de Kress  (transdução e transformação), entendo que ela seja adequada ao âmbito da teoria social-semiótica da multimodalidade (KRESS, 2010, p. 124). Entretanto, percebo o que parecer ser uma adesão mais relevante ao emprego do termo “tradução multimodal”, por parte de pesquisadoras e pesquisadores, como indicador de sua adequabilidade aos movimentos sociais em curso e às comunicações multimodais do século 21. Assim, adoto neste trabalho o uso do termo “tradução multimodal” para referir à tradução de/para/entre textos descendentes e/ou ascendentes de sistemas semióticos cuja composição inclua recursos semióticos provenientes de modos textuais híbridos.


[1] Pela taxonomia do signo (ícones, índices e símbolos), de Peirce, os ícones preservam uma relação de semelhança com algum aspecto do objeto significado, como ocorre na fotografia; os índices têm uma conexão direta com seus significados (como o ruído de uma frenagem brusca está ligado à fricção de pneus no asfalto); os símbolos têm relação arbitrária com seus significados, o que seria o caso do signo verbal, posto que a relação das palavras com seus significados é arbitrariamente definida. É curioso que Jakobson use o aqui termo “symbol”, e não o termo “sign” que usou para referir às relações de tradução intra e interlingual. Parece que esse uso restringe desnecessariamente o alcance do que Jakobson chamou “tradução intersemiótica”. (DICERTO, 2018, p. 19)