Problema de Pesquisa

Tradução de sentidos entre modos textuais

Arthur Honegger, escrevendo em 1931 sobre a relação entre música e cinema, fez apontamentos úteis para a compreensão dos problemas com que a tradução intersemiótica precisa lidar. Ele declarou:

A edição cinematográfica opera de modo completamente diferente da composição musical. Composição é continuidade e requer um desenvolvimento lógico. A edição cinematográfica lida com contrastes e oposições. É uma questão de juntar duas grandezas de naturezas diferentes e que não se regem pelas mesmas regras. 

(HALBREICH, 1999, p. 525).

Honegger sugere que a representação dos diferentes aspectos de uma peça cinematográfica através da fala, da música, da dança e de outros recursos semióticos, sejam eles quais forem, é desafiadora porque essas formas de expressão têm “naturezas diferentes”. Manifestando sua inquietação com as relações entre diferentes expressões “da mesma realidade [cinematográfica] expressa em um de seus aspectos”, Honegger especula que  “devem existir, têm de existir, relações exatas entre essas diferentes expressões de algo idêntico, e tais que sejam reversíveis ao ponto de, se as entendermos, podermos traduzir uma pela outra” (HALBREICH, 1999, p. 526). Em “Psicose”, um aspecto da cena do chuveiro seria a música, que expressa a mesma realidade comunicada pelas imagens. Tomando “Psicose” como exemplo, a inquietação de Honegger seria a falta de compreensão sobre como o modo aural traduz o modo visual. Esse entendimento, acreditava Honegger, seria a chave para a tradução reversa de recursos semióticos de diferentes categorias, a saber, verbal, visual e aural.

Essa hipótese, extraída de um contexto em que Honegger trata das relações entre música e cinema, guarda (1) um problema crucial para a tradução intersemiótica, (2) contém uma aparente contradição e (3) admite as limitações da reversibilidade tradutória. O problema crucial é estabelecer as relações entre “diferentes expressões de algo idêntico”. O uso que Honegger faz do termo “idêntico” parece vago, ou impreciso, visto que esse termo pressupõe a existência de um par (idêntico a quê?) cuja lacuna não é preenchida em seu argumento. A expressão “relações exatas” contradiz a gradação da reversibilidade tradutória reconhecida pelo próprio autor, além de ser bastante problemática, se aplicada aos Estudos da Tradução e à comunicação, de modo geral. Não obstante tal espaço para desenvolvimento, a lógica de Honegger parece apontar uma direção promissora para a compreensão dos meandros da tradução intersemiótica (vide p. 43) e, por extensão, da tradução multimodal.

Ao que parece, as dificuldades levantadas a respeito da tradução de recursos semióticos não verbais são resultantes da aplicação de parâmetros avaliativos e de estruturas conceituais que se ajustam bem à tradução intralingual e interlingual (JAKOBSON, 1959), mas que não se adequam bem à “tradução intersemiótica” e à “tradução multimodal”. Tal uso de modelos teóricos não adequados seria análogo ao uso de fita métrica para medir corrente elétrica, ou como querer que golfinhos e baleias, porque são mamíferos e têm pulmões, vivam em terra firme.

Ao analisar a mediação da escultura Marsyas, de Anish Kapoor (KAPOOR, 2002, n.p.), pela obra para piano e orquestra LamenTate, de Arvo Pärt, Debbie Moss argumenta que a transferência de sentido entre artes visuais e música tem um problema adicional que é a natureza de suas respectivas mídias. Ela explica que “nenhuma delas emprega linguagem semântica e o contraste audiovisual impede qualquer tipo de citação direta e escapa dos conceitos de tradução intra ou interlingual” (MOSS, 2013, p. 136). Embora tanto as artes visuais quanto a música tenham sentido, falta-lhes o significado semântico necessário à definição tradicionalmente aceita do termo “tradução” e à associação entre sentidos veiculados em meios diferentes. Tal associação, ou mapeamento de equivalência, seria o elemento que propicia a “citação direta”. Este, por sua vez, tem sido tacitamente aceito como um dos critérios importantes para definição do que pode e do que não pode ser definido como “tradução”.

A referência aos conceitos de tradução intralingual e interlingual, recupera a proposta de Roman Jakobson (1959), uma contribuição seminal que foi adequada para “vestir” a infância dos Estudos da Tradução. Do mesmo modo como roupas maiores são necessárias à medida em que um ser humano se desenvolve da infância para a idade adulta, conceitos mais abrangentes são necessários para cobrir aspectos que se desvelam à medida em que o pensar as teorias e os estudos da tradução faz crescer, como que da infância para a idade adulta, esse campo de estudos. Nesse sentido, este trabalho se junta às vozes de muitos outros “alfaiates do sentido” que reconhecem a necessidade de novas roupas para um corpo em transformação.

A falta de significado semântico na música faz que ela seja considerada pelo senso comum como sendo subjetiva. Esse raciocínio poderia induzir à conclusão de que significado semântico está atrelado à objetividade. Tal conclusão, porém, esbarra em forte e abundante evidência contrária provida por múltiplas instâncias de significação semântica. A forma poética verbal (semântica), por exemplo, faz uso recorrente de metáforas dispostas em múltiplas camadas de sentidos que tornam a poesia tudo, menos objetiva. Lakoff e Johnson argumentam que “a maior parte de nosso sistema conceitual normal é metaforicamente estruturado; ou seja, muitos de nossos conceitos são parcialmente compreendidos em termos de outros conceitos” (LAKOFF e JOHNSON, 2003 n.p.). Na poesia verbal, sobretudo, a sobreposição de níveis metafóricos seria uma manifestação contra o conceito de que significação semântica é uma característica distintiva de objetividade.

Dito de modo sucinto, “significado semântico” refere aqui à representação de um signo através de unidade(s) mínima(s) de sentido. O agrupamento de tais unidades pode comunicar ideias e informações. Na linguagem verbal, os “semas” são as unidades mínimas portadoras de sentido. A palavra “cavalo”, por exemplo, é “sema” de “animal”, e sua “natureza é unicamente relacional e não substancial” (NABAIS, 2009). Assim, o “sema” estabelece a relação entre um “objeto” (animado, útil, animal, quadrúpede, mamífero) e a representação de tal “objeto” pela unidade semântica “cavalo”, que é desprovida de substância em si mesma. Embora a música tenha sentido e, discutivelmente, significado, não se pode dizer que o acorde D (ré maior), por exemplo, possua “natureza relacional” estável com qualquer “objeto” predefinido. Dessa forma, falta à música significação semântica.

O termo “subjetividade” refere a um sujeito perceptivo. “Objetividade”, por sua vez, se relaciona a um objeto qualquer, seja ele percebido ou não (MULDER, s.d.). Todo sujeito perceptivo acrescenta ao objeto percebido elementos de sua própria experiência anterior e, portanto, alheios ao “objeto” propriamente dito. Um copo de água seria um copo de água fria, de água morna, de água limpa, de água suja, ou de água salgada, por exemplo. A “objetividade”, em contrapartida, evitaria a adição de elementos da experiência de um sujeito perceptivo por partir do “objeto” para o “objeto”. Um copo de água seria simplesmente um copo de água. Idealmente, o “objeto” da “objetividade”, uma vez percebido, teria o mesmo conjunto de atributos que possuía antes de ser notado. O da “subjetividade”, por sua vez, seria acrescido de elementos atribuídos pela experiência do sujeito perceptivo.

 Entender a música como entidade subjetiva nega à música a existência autônoma15F[1]. Partindo dessa premissa, ela dependeria de um sujeito percebedor para existir e teria tantas formas e sentidos quantos diferentes sujeitos a “observassem”, seja na posição de ouvintes, ou de intérpretes. A atribuição do conceito de subjetividade à música parece inverter o sentido da distribuição de sentido.  A música, tal como a poesia e sendo poesia, projeta o sentido. Ainda que ela provoque diferentes percepções psicológicas, entendo que o sentido parte da música para o sujeito percebedor, seja tal sujeito o ouvinte ou o intérprete, e não o contrário.

Toda e qualquer pessoa que ocupe a posição de recebedora de um sentido comunicado tenderá ao acréscimo de graus variados de subjetividade à interpretação deste sentido. Basta pensar na percepção psicológica das ragas indianas (os modos da música carnática indiana) por uma pessoa acostumada aos padrões da música ocidental. A subjetividade supõe economia, no sentido de aproveitar conhecimentos que já se possui na avaliação e assimilação de novos conceitos. De certo modo, a subjetividade é o padrão distintivo do comportamento humano, que tende a construir novas estruturas conceituais sobre bases preexistentes. Talvez por isso seja tão difícil conceber a música de modo puramente objetivo16F[2]. Assim, ao invés de pensar a relação entre objetividade e subjetividade como uma dicotomia, serviria melhor à argumentação neste trabalho dispor esses conceitos em uma escala gradativa de mais ou menos objetivo e mais ou menos subjetivo.

Tendo presente essa escala gradativa, se atribuirmos à música a gradação de mais para “objeto” ontológico17F[3], em contrapartida, ela seria proporcionalmente mais percebida como um “ente” (coisa) em uma composição de elementos que constitui “mundo” (HEIDEGGER, 2005, p. 103, 104), menos dependentemente de ser percebida por qualquer sujeito observador18F[4]. A percepção externa não afetaria quaisquer características do “objeto” música. O senso comum de que a música é subjetiva, derivado de uma análise baseada em um modelo binário “subjetivo : objetivo”, portanto, parece potencialmente enganoso e precipitado. Para Lakoff e Johnson, a dicotomia “objetivo : subjetivo” “seria um mal entendido baseado em uma suposição cultural equivocada de que a única alternativa ao objetivismo é a subjetividade radical, ou seja, ou você acredita em “verdade absoluta” ou pode fazer o mundo à sua própria imagem” (LAKOFF e JOHNSON, 2003 n. p.). A intuição parece sugerir a subjetividade como traço mais marcante do que a objetividade na manifestação artística musical. Mas será que não há um grau de objetividade (e aqui nos deparamos com o paradoxo de perceber o objetivo, o que o tornaria subjetivo) atrelado à natureza da expressão musical que poria em xeque o senso comum? Além disso, significado semântico por si só não implica objetividade, talvez apenas um grau menor de subjetividade.

Fatores culturais, por exemplo, podem fazer com que a mesma fala seja percebida de modos diferentes. Expressões consideradas chulas e palavrões, compostas à base de significado semântico, podem divertir algumas pessoas, chocar outras e nem mesmo serem percebidas por outras ainda, e isso se dá por causa da adição de elementos da experiência prévia do sujeito percebedor à sua significação, já descrita como “subjetividade”. A influência do contexto sobre as reações idiossincráticas acrescenta complexidade à questão envolvendo significado semântico, objetividade e subjetividade. Como exemplo disso, o senso comum sugere que muitas pessoas que considerariam corriqueiro o uso de palavrões em conversas entre amigos em um bar, o julgariam inaceitável do púlpito em uma igreja. Mesmo no campo da tradução especializada, que busca minimizar ambiguidades pelo uso de linguagem mais uniforme, é praticamente impossível transmitir exatamente a mesma informação a grupos variados de pessoas. Por isso, arguo que significação semântica apenas propicia grau menor de subjetividade, em comparação com outros códigos em que o semiótico prevalece, como ocorre no caso da música.

Refletindo sobre os conceitos de subjetividade e objetividade em relação à música, o compositor e musicólogo Antônio Jardim argumenta:

Precisamos superar a questão quando ela se apresenta no horizonte de subjetividade/objetividade, ou não avançaremos na compreensão de como a música se mostra e se diz. Se se fala de uma subjetividade da música, deslocamos (…) o seu sentido para fora dela. Se falamos de objetividade, também, pois todo objeto institui um sujeito. A música, no meu entender, configura sentido antes que significado (…). Se ela presentifica sentido, ela é pré-predicativa (pré-dicado=pré-juízo), pré direcional, assim, antes do direcionamento empenhado na relação sujeito/objeto. Sentido, me parece ser, antes que significado (…). A relação que entendo decisiva é ser/ente, quer dizer, o que se vela e o que se desvela. O que se oculta e o que se mostra, em que o que se mostra deixa de mostrar algo, ao mesmo tempo que o que se oculta deixa algo por ocultar. Mostrar-se e dizer-se como sua própria condição de ser possível é o que a música põe e dispõe. Mostrar-se e dizer-se essencia-se como linguagem.

Antônio Jardim, 2020.

Assim, subjetividade e objetividade seriam tokens secundários na compreensão da música como forma de expressão. O sentido, para Jardim, tem precedência porque a música, em sua condição “pré-predicativa” e “pré-direcional”, antecede as relações sujeito-objeto e, portanto, o significado que dessas relações deriva. A música, como “ser possível”, se manifesta (ente possível) a partir de sua existência. Dessa forma, ela seria “autônoma” desvelando-se como linguagem, em lato sensu.

De acordo com a Encyclopædia Britannica, “a rigor, falar de linguagem da música é uma falsa analogia” porque, embora a música seja composta a partir da organização de notas em padrões de melodia, ritmo e harmonia, diferentemente das palavras, as notas musicais não têm significado em si mesmas (ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, 1972, p. 1061). Admitidamente, as notas musicais, tais quais os sons básicos dos fonemas que compõem as palavras, não têm significação semântica em si mesmas. A organização dos sons de fonemas de acordo com um sistema linguístico específico acarreta significado pertencente a tal sistema. Embora notas musicais não possuam significado semântico fixo em si mesmas, parece razoável admitir que a organização de notas em um sistema musical guarda algum potencial de receber carga semântica. Por algum motivo, talvez pela abundante suficiência semântica fixa do som das palavras, tal potencial latente permanece pouco explorado.

Argumentando sobre a construção de significados na língua falada, Theo Van Leeuwen declara que “se existem significados fixos é porque pessoas os fixaram, ainda que nem sempre se consiga determinar o momento da fixação” (VAN LEEUWEN, 1999, p. 193). A fixação de significados se dá, segundo Van Leeuwen, pela criação e imposição autoritativa de regras, seja tal autoridade derivada dos dicionários, da convenção, da tradição, da origem (o significado primitivo do termo ou de sua etimologia) ou do autor do signo. Em princípio, o fenômeno compreendido na vibração de ondas sonoras, sem considerar seu aspecto fenomenológico e resultante categorização em som ou ruído, seria manifestação adequada à construção de sentido. Em contexto urbano, o ruído do arrastar de pneus no asfalto, seguido do barulho abafado da deformação de chapas de metal, contém a informação de que houve uma colisão envolvendo pelo menos um veículo automotor. O som da voz da repórter que narra a colisão, com o emprego de unidades semânticas, pode conter a mesma informação conferida pelo ruído da batida, este desprovido de unidades semânticas. Assim, a significação semântica seria uma representação da informação através de uma linguagem de alto nível (a articulação verbal da notícia pela repórter), ou seja, de uma linguagem dependente de uma “linguagem” pré-existente em nível inferior (o ruído dos pneus no asfalto, seguido do som abafado de deformação de metal).

O que impede que sons musicais, cujas variações em frequência, duração e timbre podem ser mais numerosas do que a soma de todos os fonemas de algumas línguas, sejam usados como base para a construção semântica de significado? Uma abordagem experimental deste problema talvez apontasse para a possibilidade de sons musicais portarem significado semântico. As línguas tonais, que fazem uso de fenômenos musicais na construção de significados das palavras, talvez pudessem ser percebidas como indício da viabilidade de associação entre música e significado semântico.

Em suma, o problema de que se ocupa este trabalho é entender quais relações estão implicadas na transferência de sentido entre recursos semióticos não verbais, ou modos textuais não verbais. Mais especificamente, será que as teorias do sentido e da tradução contemplam, ou seriam suficientes para contemplar uma análise sistemática dos processos tradutórios entre tais recursos semióticos? O que dizer da tradução da arte fotográfica para a arte musical? Será que existem, como postulou Honegger, “relações exatas entre (…) diferentes expressões de algo idêntico, e tais que sejam reversíveis (…) ao ponto de traduzir uma pela outra” (HALBREICH, 1999, p. 526)? Encontrar caminhos que ampliem o conhecimento sobre essas questões é o problema em questão.


[1]  A expressão “existência autônoma” é usada aqui em oposição ao conceito de o sentido da música depender da interpretação que lhe confira a pessoa que a ouça. É evidente que a música não é autônoma no sentido de criar a si mesma, posto ser ela uma forma de expressão artística.

[2] Lakoff e Johnson argumentam que a natureza metafórica de qualquer sistema conceitual implica a impossibilidade da objetividade pura. Para os autores, todo sistema conceitual humano é marcado pela ausência de “verdade completamente objetiva, incondicional e absoluta” (LAKOFF e JOHNSON, 2003 n. p.)

[3] O termo “ontológico” é usado aqui em harmonia com a proposta de “ontologia fundamental” para a compreensão do sentido do ser, de Martin Heidegger. Ao tratar da descrição fenomenológica do mundo, embora questione a adequabilidade do método de compreensão do sentido do ser, Heidegger explica que “a substancialidade é o caráter ontológico das coisas naturais, das substâncias. Esse caráter é o fundamento de tudo” (HEIDEGGER, 2005, p. 103, 104). Assim, o termo “ontológico” refere à compreensão do ser em si, ao desvelar de sua essência (propriedades) e modos de manifestação em relação ao todo em que está inserido.

[4] Entendo os termos “ontológico” e “objetivo” como relacionados, no sentido de o primeiro ser a base conceitual do segundo. Em outras palavras, a objetividade seria uma abordagem da coisa pela coisa, em uma tentativa de filtrar tanto quanto possível de tudo o que não pertença à sua substância.