Mudança pragmática do linguístico para o semiótico

Ao tratar da transposição de significados no atual cenário multimodal, em que a “linguagem” perde o espaço como meio dominante para todos os fins comunicativos, Gunther Kress indica que a “semiótica social”, com seu foco em “significados e construção de significados”, sugere tanto o modelo quanto as ferramentas para explicar a constituição de significados (KRESS, 2020, p. 27). O autor explica que sua argumentação, no capítulo Transposição de significado, do livro Tradução e multimodalidade: além das palavras (ibidem, p. 24), não é desenvolvida a partir da teoria da tradução. Isso parece adequado ao objetivo de Kress, conforme descrito por ele mesmo, de:

Explorar as questões que surgem da mudança de um meio dominante (“linguagem”) para o reconhecimento da igualdade em potencial entre muitos meios de constituir significados (“os modos da multimodalidade”) e considerar os efeitos de tal mudança nas concepções atuais de tradução.

Gunther Kress (2020, p. 24)

As concepções canônicas de “tradução” que mais se aproximam da tradução multimodal estão enraizadas no conceito de tradução intersemiótica, proposto por Jakobson (1959, p. 233), conceito este que pressupõe a dominância da “linguagem” como meio de transposição de significados (vide p. 43). A afirmação de Kress, sobre sua argumentação não se originar das teorias da tradução, sugere que os Estudos da Tradução são lentos em acolher mudanças significativas em seus paradigmas, tal como o paradigma da dominância linguística nas formas comunicativas. Gunther Kress propõe a mudança de foco, no que diz respeito à questão da tradução na paisagem semiótica multimodal contemporânea, tirando-o da “linguagem” como entidade central para o “significado”. No que diz respeito às disciplinas, Kress advoga a mudança da moldura linguística para a moldura semiótica (KRESS, 2020, p. 24). Essa quebra de paradigmas parece promissora no sentido de acolher e acomodar melhor os estudos sobre tradução multimodal.

As dificuldades teóricas relativas a situações em que as formas de comunicação são inequivocamente multimodais, argumentam Boria e Tomalin, não são recentes (BORIA, CARRERES, et al., 2020, p. 3). Partindo de observações sobre a tradução, do francês para o inglês, do poema Ballade des dames du temps jadis, de François Villon (1461), por Dante Gabriel Rossetti (1870), os autores enfatizam que o “significado” semântico do poema não é o único fator tomado em consideração na tradução. Boria e Tomalin questionam se as características estruturais devem ou não ser consideradas parte do significado do texto fonte e argumentam que “se a equivalência semântica entre os textos fonte e alvo for o objetivo primário da tradução, a preservação do esquema de rimas provavelmente frustraria esse objetivo” (ibidem, p. 2).

Tomando como exemplo a coreografia de L’Après-midi d’un faune porVaslav Nijinsky, para a companhia de balé russo de Sergei Diaghilev, em 1912, inspirada tanto na música sinfônica de Debussy (1894) quanto no poema de Mallarmé (1876) de mesmo nome, Boria e Tomalin questionam se a representação musical do texto pode ser chamada de tradução. O capítulo II (Música e Tradução) deste trabalho apresenta vários exemplos de transferência de significados entre textos multimodais como instâncias de tradução. Entretanto, como observado por Boria e Tomalin em 2020, as dificuldades teóricas em relação aos exemplos acima persistem. Por esse motivo, argumentam os autores que uma consideração centrada na “tradução em contextos multimodais é cada vez mais urgente no mundo moderno, à medida em que as comunicações envolvendo palavras, imagens, movimento, gestos, música (…) ocorrem frequência sem precedentes” (ibidem, p.3). Considere o seguinte breve histórico da popularização dos aplicativos de mensagens e sua influência na comunicação multimodal.

Durante a última década (2010-2020), a modernização dos meios de comunicação atingiu picos sucessivos. Os aplicativos de mensagens se tornaram acessíveis a números maiores de usuários a partir de 1998, quando a AOL Instant Messenger (AIM) adquiriu a ICQ (BAROT e OREN, 2015, n.p.). Aplicativos como Skype e MSN Messenger, embora fossem populares na primeira década do século 21, ainda dependiam dos computadores (desktop/laptop) para rodar e, portanto, estavam restritos a uma fração “privilegiada” da população. O primeiro smartphone foi lançado pela IBM, em 1992, mas seu custo era proibitivo, seus recursos limitados e a duração de sua bateria era de apenas uma hora. A disseminação dos smartphones ganhou força com a apresentação do iPhone, da Apple, em 2007 (ANDREW, 2018, n.p.). A popularização de smartphones ocorreu a partir de 2011, com a produção em massa desses dispositivos e a consequente redução de preços, e a expansão das redes celulares. A revolução tecnológica na produção de smartphones desencadeou uma revolução no uso de textos multimodais.

Até 2012, o principal meio de troca de mensagens eletrônicas usava a tecnologia short message service (SMS), que comportava apenas texto simples (INSIDER INTELLIGENCE, 2015, n.p.). Em 2013, os aplicativos de mensagens do tipo OTT (over-the-top, ou sobre redes existentes) assumiram a liderança na entrega de mensagens e, desde então, continuam a funcionar como sistemas onipresentes. Os aplicativos OTT possibilitam não apenas a circulação de texto escrito, mas ampla variedade de recursos multimodais que inclui imagens, memes, memes animados, figurinhas, emoticons, áudio, vídeo e uma infinidade de símbolos. É comum ver pessoas reunidas não conversarem entre si, mas usarem ininterruptamente os aplicativos de mensagens na troca de recursos multimodais de comunicação. Esse fenômeno teve impacto profundo nos padrões comportamentais e na própria maneira de estabelecer a comunicação. Visto que a compreensão do significado de memes, por exemplo, frequentemente depende do contexto em que esses são usados, uma parcela maior da informação precisa ser “levantada” pelo destinatário. Ou seja, parece haver mais nas entrelinhas a cargo de quem recebe a mensagem do que haveria em outras formas de comunicação praticadas antes da revolução em pauta. É evidente que essas formas multimodais que dispensam a palavra são carregadas de sentido e significação.

Os eventos acima, sobre a revolução das comunicações trazida pela disponibilidade aumentada de dispositivos eletrônicos “inteligentes”, seriam apenas um conjunto de evidências em suporte da mudança de paradigma que tira o foco da “linguagem” para colocá-lo no “significado”, e “de um panorama linguístico para um semiótico” (ibidem p. 24). Como exposto, existe e é usada cotidiana e corriqueiramente uma ampla variedade de “recursos de significação” cujas características e regularidades precisam ser examinadas. “Essa é uma questão já urgente em quase todos os campos de nossas vidas”, argumenta Kress (ibidem p. 27). Partindo dessa necessidade, o autor apresenta um “breve esboço para uma teoria semiótica social” cujos modelo e ferramentas seriam adequados à documentação e à transposição de significados. Nesse modelo teórico, a “tradução” seria retratada como “transposição de significados” nos domínios da semiótica multimodal que ocuparia uma posição central no mundo social contemporâneo.

A propósito do termo “transposição”, Gunther Kress (ibidem) argumenta que o uso metafórico do termo “posição” em ambientes sociais, posição de recursos semióticos, de interesses pessoais ou de outros fatores importantes é crucial para a “tradução”. Esse argumento considera o sentido ampliado de “tradução/transposição” que contempla “todo e qualquer significado” (ibidem p. 28). Daí surge a necessidade de uma teoria semiótica social abrangente, em que a tradução figuraria como uma instância da comunicação. Como vimos, Gunther Kress enfatiza que sua proposta de mudança de paradigma não parte de uma perspectiva interna das teorias da tradução. A estabilidade das teorias de uma disciplina é benéfica e desejável em muitas circunstâncias. Seria difícil manter o passo com teorias que mudassem a cada sopro de uma proposta diferente, como folhas ao vento. Por outro lado, o termo “urgência” sugere que, conforme empregado por Kress e por Boria e Tomalin ao caso específico das teorias da tradução, as mudanças sociais decorrentes da revolução tecnológica foram tão rápidas que a disciplina se perdeu no tempo e falhou em suprir ferramentas e modelos teóricos suficientes para a compreensão do fenômeno em curso. De fato, é urgente pensar o problema da tradução multimodal. Tal urgência é reconhecida por vários autores que procuram trazer propostas de modelos adequados ao cenário atual. De modo sintético, vejamos o que esses autores têm feito.