O inefável

A palavra “inefável” tem sua origem no latim ineffabilis, que é a junção da raiz effaris (falar, dizer, contar, predizer, anunciar) com o prefixo de negativa in (FARIA, 2003, p. 337, 492). Assim, o adjetivo “inefável” se define como aquilo que não pode ser expresso. O Dicionário Latino-Português indica a obra enciclopédica Historia Naturalis, de Plínio (o Velho), como evidência da antiguidade do uso desse termo em latim, por volta de 77 AD. O prefácio ao capítulo um do quinto livro dessa obra explana brevemente as questões geográficas e sociais abordadas com mais profundidade ao longo do capítulo. É nesse contexto que Plínio faz uso do termo ineffabilia, traduzido nos excertos abaixo como impronunciables, em espanhol, most hard to be pronounced, em inglês, e “inefáveis”, em português.

LATIMPORTUGUÊS
Africam graeci Libyam appellavere et mare ante eam Libycum; Aegyptio finitur, nec alia pars terrarum pauciores recipit sinus, longe ab occidente litorum obliquo spatio. Populorum eius oppidorumque nomina vel maxime sunt ineffabilia praeterquam ipsorum linguis, et alias castella ferme inhabitant. (ELDER, 1906, n.p.)Os gregos nomearam a África como Líbia, e ao mar que a costeia, Líbico; limita-se como Egito e nenhum outro lugar na terra tem menos baías; seu litoral ocidental é bastante oblíquo. Os nomes de seus povos e de suas cidades são de todo inefáveis, se não nas próprias línguas deles; fora isso, moram principalmente em fortalezas.
ESPANHOL 
Los griegos llamaron Libia a África, y lal mar que está ante ella, Líbico [1]; limita con Egipto [2] y ninguna otra parte de la tierra contiene menos golfos; su costa es muy oblicua por el occidente. Los nombres de sus pueblos y ciudades son absolutamente impronunciables si no es en sus propias lenguas, y, por otra parte, viven casi siempre en fortalezas. (SECUNDUS, 2018, n.p.)Os gregos chamaram a África de Líbia, e ao mar que a costeia, chamaram Líbico [1]; limita-se com o Egito [2] e nenhuma outra parte da terra contém menos golfos; seu litoral ocidental é muito oblíquo. Os nomes de seus povos e cidades são absolutamente impronunciáveis em outra língua que não as deles e, além disso, quase todos moram em fortalezas.
INGLÊS ARCAICO 
AFricke the Greekes haue called Lybia, euen all that tract from whence the Lybian sea before it beginneth, and endeth in the Aegyptian. No part of the earth receiueth fewer gulfes and armes of the sea, in that long compasse of crooked coasts from the West. The names as well of the Nations as towns there be of all others most hard to be pronounced, vnlesse it be in their owne tongues, and againe they be castles and forts for the most part that they dwell in (ELDER, 1634, p. 219).África é o nome que os gregos deram à Líbia e, ao mar que a costeia, chamaram Líbio. Ela faz divisa com o Egito. Nenhuma parte da terra possui menos golfos do que ela. Sua costa ocidental é muito oblíqua. Os nomes de seus povos e cidades são inefáveis em outra língua que não as próprias línguas deles. No que concerne moradias, na maioria dos casos, eles habitam fortalezas.
Tabela 1 –  Tradução do texto de Plínio do latim, do espanhol e do inglês para o português (tradução minha).

Nesse contexto, inefável está associado à articulação mecânica da fala, posto que o autor evidentemente fazia referência à reprodução dos sons das palavras que nomeavam cidades e povos conforme articulados pelos habitantes da região em suas próprias línguas. A existência e o uso de tais nomes pelos nativos indica que o emprego do termo inefável, naquele contexto, diverge do uso que fizeram os filósofos da antiguidade, particularmente em contexto religioso. Além de apenas designar dificuldade em pronunciar, o adjetivo inefável está primariamente associado a uma limitação da linguagem. De forma simultânea, tal termo (1) significa algo, (2) nega que esse algo tenha um nome e (3) declara a linguagem (ou o falante) incapaz de atribuir signos linguísticos suficientes para descrição ou nomeação do ente que significa, seja tal incapacidade por limitação externa ou autoimposta (por exemplo, como quando por superstição a pessoa evita pronunciar um nome qualquer). Para ilustrar, uma pessoa que, ao transcrever uma fala gravada, substituísse os sons de fala ininteligíveis pelo caractere “—” estaria (1) indicando sua percepção do som ininteligível, (2) negando um nome a esse som, ainda que o compreenda à base do contexto, e (3) admitindo sua incapacidade de nomear esse item sonoro. A diferença entre o termo inefável e o “—” nesta analogia está no fato de que o sentido daquilo que é inefável não necessariamente é incompreensível. Ao contrário, o sentido do inefável pode ser bastante preciso, como veremos.

Naomi Janowitz observa que o termo grego usado por alguns filósofos antigos e frequentemente traduzido por inefável é arrēton, composto por um “a” de negação justaposto ao verbo “dizer/falar” (JANOWITZ, 2018, p. 45). Dentre os significados atrelados ao termo arrēton, conforme a Figura 13, estão os conceitos de (i) não dito, (ii) aquilo que não pode ser dito ou expresso, (iii) indizível, imenso, (iv) que não deve ser divulgado, (v) indeclarável, horrível (vi) sem nome e (vii) vergonhoso de se dizer (LIDDELL e SCOTT, 1996, p. 247)

Figura 14 – Definição de “arrēton”. A Greek-English Lexicon (LIDDELL e SCOTT, 1996, p. 247)
ἄρρητος , ον, also η, ον E.Hec.201:—
II. that cannot be spoken or expressed,ἀδιανόητον καὶ . καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονPl.Sph.238c: hence, unspeakable, immense, App.BC3.4; “ἐπιθυμίαPhld.Ir.p.50 W.; “εὐχαριστίαId.Lib.p.51 O.
III. not to be spoken: hence,
1. not to be divulged, ἱροργίαι, ἱρά, Hdt.5.83, 6.135; “σέβας ἀρρήτων ἱερῶνAr. Nu.302; “. σφάγιαE.IT41; “. ἀβακχεύτοισιν εἰδέναιId.Ba.472; διδακτά τε ἄρρητά τ᾽, i.e.things profane and sacred, S.OT301; . κόρη the maid whom none may name (i.e. Persephone), E.Fr.63, cf. Hel. 1307; ἀρρήτων θέσμια, sc. of Demeter and Persephone, IG3.713.6.
2. unutterable, horrible,δεῖπναS.El.203 (lyr.); “λώβηE.Hec.200 (lyr.); ἄρρητ᾽ ἀρρήτων ‘deeds without a name’, S.OT465 (lyr.).
3. shameful to be spoken,ῥητόν τ᾽ . τ᾽ ἔποςId.OC1001, cf.Aj.214 (lyr.), 773; ῥητὰ καὶ . ὀνομάζων ‘dicenda tacenda locutus’, D.18.122; “πάντας ἡμᾶς ῥητὰ καὶ . κακὰ ἐξεῖπονId.21.79. Adv. “τωςD.L.7.187.
IV. of numbers, ἄρρητα, τά, irrationals, surds, opp. ῥητά, Pl.Hp.Ma.303b, cf. R.546c.

Queira ignorar os links no texto incorporado acima.
Links completos na definição de “arreton” em http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0057:entry=a)/rrhtos

A resolução da evidente aporia no inefável é um dilema filosófico persistente e tão antigo quanto o próprio conceito (arrēton/ineffabilis) porque o inefável transcende a palavra. No entanto, essa transcendência é rompida no momento de sua designação como inefável. Como expresso por Michael Sells, “qualquer declaração de inefabilidade, tal como “X transcende nomes,” gera a aporia de que o sujeito da declaração tem de ser nomeado (como X) para que se possa afirmar que ele transcende nomes” (SELLS, 1994, p. 2). As três possíveis soluções dessa aporia, segundo Sells, seriam (1) o silêncio, (2) estabelecer uma distinção entre dois tipos de nomeação ou (3) aceitar a aporia e adotar um novo modo de discurso (ibidem). Deste modo, para as tradições religiosas, por exemplo, que entendem Deus como inefável, a primeira resposta, o silêncio, implicaria a supressão de toda ocorrência do termo. A segunda resposta seria criar a distinção entre “Deus-como-ele-é-em-si-mesmo” e “Deus-como-ele-é-nas-criaturas” (ibidem) e adotar esta nomeação em detrimento daquela. A terceira solução seria a linguagem apofásica. Conforme explicado por Sells, o termo apophasis é frequentemente pareado como antônimo do termo kataphasis, que significa “afirmar, dizer, falar com” (ibidem, p. 2, 3). Embora o termo apophasis possa significar “negação”, o autor sugere que uma definição mais precisa seria “desafirmar, desdizer”. Não se pode desdizer algo que não foi “dito”. Se o termo “Deus” é uma transcendência, cada ocorrência desse termo no discurso apofásico tem de ser corrigida sucessiva e continuamente. Sells argumenta que o que dá sentido ao discurso “é a tensão [momentânea] entre as duas proposições” (ibidem, p. 3). O sentido do sagrado impronunciável no termo “Deus” derivaria dessa necessidade de correção de uma predicação anterior. Diferente do discurso puramente apofásico, explica Sells, a teoria apofásica “declara a inefabilidade da transcendência (…) sem reaver para corrigir o nome empregado na afirmação de sua própria inefabilidade” (ibidem), ou seja, interrompe o ciclo contraditório. Uma vez contextualizado, o autor explica que seu estudo sobre a inefabilidade tem o objetivo de

Identificar o evento semântico distintivo dentro da linguagem apofásica, o que chamarei de “evento significativo”. Para elucidar o que se quer dizer com “evento significativo”, pode ser de ajuda contrastá-lo com a bem-conhecida distinção entre significado (como sentido e referência) e evento (como predicação). O evento significativo indica o momento em que o significado se torna idêntico, ou se funde, ao ato da predicação. (SELLS, 1994, p. 9, 10.)

Em síntese, a atribuição do termo “inefável” a um conceito não significa ausência de sentido. O simples fato de se tratar de um conceito (ente) já indica presença de sentido. Além disso, o que é inefável para uma comunidade pode não ser para outra, a depender de fatores culturais, ou mesmo linguísticos. Um conceito pode adquirir status de inefável justamente por causa de seu sentido para a comunidade que o elege como tal. Por outro lado, existem conceitos, particularmente os associados às emoções e sentimentos humanos, que escapam da linguagem, conforme veremos adiante.

A seguir, apresento um breve relato pessoal que contextualiza o dilema do inefável no domínio da experiência cotidiana. No começo da década dos 1980, em uma região rural isolada, no Brasil Central, as pessoas evitavam a pronúncia da palavra “câncer” para nomear a doença. Como alternativa, elas diziam algo como “fulano está com ‘ca’” ou “com aquela doença”. A não nomeação da doença, ou antes, a utilização de um subterfúgio expressivo, tinha raízes na superstição. Era como se a palavra tivesse o poder de desencadear a doença na pessoa que ousasse pronunciá-la, ou de atestar o óbito do doente ainda vivo. Para aquela gente, havia algo de místico na enunciação dos sons daquele termo específico. A linguagem apofásica se manifestava na reposição de termos, no desdizer o “câncer” (fulano tem câncer, mas não é câncer, é “ca”). O “evento semântico distintivo” (evento significativo) ocorre, de acordo com Sells, na fusão do significado (alguém tem câncer) com a predicação (a expressão verbal do significado), ainda que a predicação omita o termo “câncer”.

Como vimos, o termo inefável foi empregado no compêndio Historia Naturalis (Plínio, o Velho) em conexão com a incapacidade de articulação mecânica dos sons. Em outros contextos, o inefável está associado, não a uma limitação conceitual ou linguística, mas a uma negação consciente da declaração. A transcendência da linguagem e da própria compreensão pode ser contada como a origem do inefável, em outros contextos. A esta última origem do inefável, por sua relação mais estreita com a música, são dirigidas as considerações a seguir.

Eyolf Østrem, ao examinar “o Deus Inefável” segundo Jerônimo e Agostinho, argumenta que a definição de inefável em conexão com o nome de Deus pode ser entendida de duas maneiras diferentes. Conforme traduzido do latim para o inglês por Østrem (e do inglês para o português por mim), o texto possivelmente atribuído de modo errôneo a São Jerônimo afirma que Deus “é chamado inefável, não  porque Seu nome não possa ser dito, mas porque Seus limites não podem ser compreendidos pela razão e pelo intelecto e, também, porque nada que se diga a respeito Dele fará jus a Ele” (ØSTREM, 2002, p. 288). Esse conceito de inefabilidade, atribuído a São Jerônimo, como algo que transcende a razão e o intelecto, de acordo com Østrem, difere do inefável segundo Santo Agostinho, para quem a inefabilidade divina é restrita à linguagem (ibidem). A arte, como expressão que transcende a linguagem, seria a maneira possível para se alcançar o divino. Isso harmoniza com a filosofia grega pré-cristã.

No segundo discurso de Sócrates, em Fedro, Platão (360 AC) faz uma apologia da loucura (maniké) “inspirada pelos deuses [que] é, por sua beleza, superior à sabedoria de que os homens são autores” (PLATÃO, 2000, p. 55). Essa loucura, a “arte delirante” (ibidem), era considerada uma virtude que atestava certo grau de comunhão com o divino, posto que jamais poderia ser alcançada através da razão e do intelecto humanos. Interessa neste ponto notar que a poesia era posta à parte, pela filosofia grega da antiguidade, das demais artes. É como se a poesia fosse a arte que todas as artes quisessem ser. Vale lembrar que não se fazia a distinção moderna entre poesia e música. A continuação do discurso realça a relação entre a poesia e o inefável.

Há ainda uma terceira espécie de loucura, aquela que é inspirada pelas Musas: quando ela fecunda uma alma delicada e imaculada, esta recebe a inspiração e é lançada em transportes, que se exprimem em odes e em outras formas de poesia, celebrando as glórias dos Antigos, e assim contribuindo para a educação da posteridade. Seja quem for que, sem a loucura das Musas, se apresente nos umbrais da Poesia, na convicção de que basta a habilidade para fazer o poeta, esse não passará de um poeta frustrado, e será ofuscado pela arte poética que jorra daquele a quem a loucura possui.

Platão

A cadeia de eventos no excerto acima dá conta de que a loucura (1) fecunda uma alma virgem que, em resultado, (2) é inspirada e (3) se expressa em odes e em outras formas de poesia. Como observado na seção deste trabalho intitulada “Música e Poesia” (p. 56), as musas são as nove divindades, filhas de Zeus e Mnemósine, que presidiam a musikē tekhnē (τε’χνη), ou a “arte das musas”. Ao descrever os estágios de fecundação, gestação e nascimento da forma poética, fruto da comunhão entre divindade (as musas) e humanidade, Sócrates traça uma analogia entre reprodução e expressão poética. É significativo que a fecundação se dá durante uma espécie de transe, a loucura delirante, que poderia ser assemelhado ao transe do êxtase sexual possível na reprodução humana de fato.

Sócrates, no excerto acima, lança mão de termos frequentemente associados ao conceito de tradução, a saber, transporte e expressão. Poder-se-ia arguir que o excerto contém a descrição de um processo tradutório. O código fonte seria o pensamento inspirado pelas musas; a alma delicada e imaculada, a da tradutora ou do tradutor; o “lançar em transporte” seria o processo tradutório íntimo; a expressão em “odes e outras formas de poesia” equivaleria à materialização da obra traduzida. Dessa forma, estabelece-se a ponte tradutória entre o inefável, fora do alcance da sabedoria humana, e conceitos exprimíveis com recursos linguísticos, posto que a celebração das glórias dos antigos e a educação da posteridade são conceitos perfeitamente efáveis. De certo modo, o canto do aedo era, antes de tudo, também tradução.

Voltando a atenção para os escritos dos Pais da Igreja, é Santo Agostinho quem descreve em iubilatio um tipo de tradução entre dois códigos inefáveis. Conforme traduzido do latim para o inglês por Østrem (e do inglês para o português por mim), Santo Agostinho explica que

O som é o intelecto do coração. (…) Quem jubila, não enuncia palavras, mas produz um som de alegria sem palavras. É a voz de uma alma transbordando ao limite máximo da alegria, expressando seu sentimento sem compreender seu significado. (…) O que é cantar em júbilo? É ser incapaz de compreender, de expressar em palavras, o que é cantado no coração. Pois quem canta, (…) quando se enche de alegria que não pode ser expressa em palavras, se desvia das sílabas das palavras e segue rumo ao som de júbilo. O som de júbilo é o que dá significado ao que não pode ser enunciado. — Corpus Christianorum, series latina 38-40:  Aurelii Augustini Opera, pars X, 1-3 (ØSTREM, 2002, p. 291).

O excerto acima traça nítida distinção entre os sons da fala e os da música. Ao declarar que “o som é o intelecto do coração” (sonus enim cordis intellectus est) Santo Agostinho reconhece dois centros, no ser humano, de processamento do sentido. O termo intellectus pode ser traduzido como compreensão, entendimento ou percepção. Pelo senso comum, essas virtudes estão primariamente associadas à mente racional, o polo do sentido que opera segundo a linguagem, que recorre às sílabas como matéria prima para a comunicação de significados. Nota-se, entretanto, o uso do termo latino coris, que pode ser traduzido como coração, mente, alma ou espírito, dentre outras possibilidades. O contexto indica que o significado mais plausível do termo coris é a motivação íntima da pessoa que canta tomada pelo sentimento de profunda alegria, tão profunda que palavras são insuficientes para significá-la. Assim, coris seria o polo de processamento do sentido na instância do inefável.

Outra reflexão possível à base do texto de Santo Agostinho (ibidem, p. 291) diz respeito à relação entre expressão e significado. O significado semântico é, no mais das vezes, construído à base de símbolos estabelecidos por convenção. As palavras de origem onomatopeica seriam uma exceção a isso, já que em uma escala imaginária entre ícone e símbolo, a palavra tiquetaque, por exemplo, está mais para ícone e menos para símbolo. Santo Agostinho afirma que o júbilo é “a voz de uma alma transbordando ao limite máximo da alegria, expressando seu sentimento sem compreender seu significado” (ibidem, p. 291) e, com efeito, sugere que a compreensão do significado semântico não obsta a expressão do sentido. Isso harmoniza com a observação do filósofo argentino Mario Bunge sobre sentido e referência, na obra Treatise on Basic Philosophy, que argumenta que “codificação e decodificação não precisam ser acompanhadas pela compreensão: elas podem ser automáticas, como ocorre frequentemente com humanos” na linguagem não simbólica, cujo traço identificador seria a representação de “objetos imediatamente relevantes para o estado e os instintos do animal” (BUNGE, 1974, p. 8, 9). O som de júbilo descrito por Santo Agostinho como algo que se desvia da palavra para a direção do sentimento constitui uma expressão que atribui significado ao inefável.

O pensamento analítico é caracterizado pelo método “dividir para conquistar”. Quem pensa de modo analítico parte do todo para a minúcia, observando ao longo do percurso as relações internas entre as partes na composição da unidade. Esse pensamento racional somente é possível se for desenvolvido a partir da compreensão verbal das coisas. A terminologia é um problema para a ciência, para citar um exemplo, porque se faltarem termos descritivos dos objetos e das relações que esses têm entre si, o pensamento trava e não pode avançar. Daí a necessidade da significação semântica, simbólica e conceitual, para a construção do entendimento do mundo à nossa volta. O que dizer, porém, a respeito da eficácia do pensamento analítico na compreensão do que Santo Agostinho chamou “cordis intellectus”, o universo dos sentimentos carregados de sentido?

O seguinte excerto do episódio intitulado Descent, o 26º da sexta temporada de Star Trek: The Next Generation, que foi ao ar nos Estados Unidos em 19 de junho de 1993, contém o diálogo entre o androide tenente comandante Data (Brent Spiner) e o chefe da engenharia Geordi La Forge (LeVar Burton) sobre os limites da linguagem na expressão dos sentimentos. Contextualizando brevemente a cena, Data teve um ataque de cólera durante um conflito com inimigos da raça híbrida borg, ataque esse que ele acredita ter desencadeado sua primeira experiência com sentimentos humanos cuja falta é a principal barreira entre sua condição de androide e a muito desejada condição de humano. La Forge objeta perguntando a Data como ele poderia saber a diferença entre um surto de energia em seus circuitos eletrônicos e um acesso de ira, ao que Data admite insuficiência de dados referenciais para responder à pergunta, e pede a La Forge um relato de como é sentir-se irado, posto que Data se acha incapaz de prover uma descrição verbal da experiência que teve com o sentimento. Na continuação da cena,

Geordi titubeou. Esse não é o tipo de conversa franca que amigos têm durante um café. Ele podia descrever o interior de um motor de dobra, uma ciência quase impossível, mas não era capaz de descrever a simples arte de perder a linha.

— Bem… quando fico com raiva… primeiro, eu começo a sentir… hostilidade.

— Você poderia descrever hostilidade? retrucou Data.

— É se sentir… beligerante… combativo.

— Você poderia descrever o sentimento de raiva sem referir a outros sentimentos?

Geordi se debateu com isso por alguns segundos. Era uma boa pergunta, daquelas que não brotam todo dia.

— Não, suspirou Geordi, eu acho que não. Eu apenas… sinto raiva. (CAREY, 1993, n.p.)

Carey (1993, n. p.)

O que mais se aproxima do pensamento analítico como instrumento para a compreensão do inefável nos sentimentos seria a linha filosófica do materialismo eliminacionista. A explicação de Geordi, em resposta ao questionamento de Data, não pôde ir além de “eu simplesmente sinto”. Entretanto, um materialista eliminacionista argumentaria que para cada termo psicológico, como ira, medo, alegria, tristeza, haverá uma explicação neurocientífica quando a neurociência estiver suficientemente desenvolvida. Conforme didaticamente explicado por Paul Churchland, a posição defendida pelo materialismo eliminacionista espera que

Quando a neurociência tiver amadurecido, a ponto de a pobreza de nossas atuais concepções ter-se tornado manifesta a todos, e a superioridade do novo arcabouço tiver sido estabelecida, poderemos, por fim, dar início à tarefa de reformular nossas concepções das atividades e estados internos, no interior de um arcabouço conceitual realmente adequado. Nossas explicações sobre os comportamentos uns dos outros irão recorrer a coisas como nossos estados neurofarmacológicos, nossa atividade neural em áreas anatômicas específicas e a outros estados que forem relevantes para a nova teoria. Nossa introspecção individual também será transformada e poderá ser profundamente aprimorada em razão de um arcabouço conceitual mais penetrante e preciso, com o qual ela terá de trabalhar – da mesma forma que a percepção do céu noturno pelo astrônomo foi em muito aprimorada pelo conhecimento detalhado da moderna teoria astronômica de que ele dispõe. — (CHURCHLAND, 1998, n.p.)

De acordo com essa explanação do materialismo eliminacionista, num futuro em que a ciência tenha evoluído suficientemente, tanto Geordi quanto Data seriam capazes de descrever a ira de modo preciso, empregando termos da neurociência. No futuro fictício de Star Trek38F[1], porém, o “amadurecimento” da neurociência sobre o qual Churchland escreveu ainda não teria chegado. O texto didático de Churchland, cujo objetivo é o contraste entre linhas filosóficas diferentes, e a não a defesa de uma linha específica, explica que “os argumentos em favor do materialismo eliminacionista são difusos e muito pouco conclusivos”, embora o autor argumente serem “mais fortes do que em geral se supõe” (ibidem). Parece difícil acomodar o adjetivo “forte” a argumentos difusos e inconclusivos, o que Churchland procura explicar por ressaltar limitações descritivas da psicologia popular.

O argumento materialista eliminacionista de que a ira seria uma manifestação de atividade neurobiológica ainda não compreendida, ao invés de um estado mental de consciência, é inadequado porque elimina o próprio fenômeno que busca explicar (ANANTH, 2008, p. 239). Pelo argumento materialista eliminacionista, o acesso de ira vivenciado por Data seria unicamente resultante das reações e relações de sua rede neural e, assim sendo, deixa de ser acesso de ira e elimina a razão da análise em sua origem. Além disso, esse modelo baseado em atividade neurobiológica parece sugerir uma análise sincrônica da rede neural, pois teria como objeto manifestações comportamentais psicológicas transitórias que requerem corte analítico vertical. Desse modo, o modelo em questão deixa escapar o conjunto de fatores inumeráveis, somente perceptíveis em corte horizontal, diacrônico, que predispõem uma pessoa a determinado comportamento em situações que a remetam a experiências por ela vividas. Por exemplo, a pessoa que nunca tenha sido assaltada ao usar transporte público e que sequer tenha presenciado um assalto possivelmente terá níveis de apreensão inferiores aos níveis de ansiedade e medo que pode experimentar alguém que tenha sofrido um assalto dentro de um ônibus. Mesmo a sabedoria do dito popular “gato escaldado tem medo de água fria” percebe aquele conjunto de fatores que o materialismo eliminacionista parece ignorar.

Como vimos, Santo Agostinho referiu ao inefável na música de júbilo como “cordis intellectus”. Naturalmente, alegria não é a única emoção cuja descrição escapa da palavra. Parece muito provável que Santo Agostinho estivesse familiarizado com o trecho bíblico da carta de Paulo aos Romanos, escrita por volta do ano 56 AD, capítulo oito, versículo 26, onde o apóstolo emprega o termo grego στεναγμοῖς ὰλαλἡτοις (PAULO, 1942, p. 532), que pode ser traduzido como “gemidos não pronunciados”. O contexto associa esses gemidos não pronunciados, mas repletos de sentido, com a oração feita sob tanta ansiedade que a pessoa que ora não sabe que palavras usar ou o que pedir em oração. Esta seria outra instância de sentido, oposto ao do canto de júbilo, originária de “cordis intellectus”.

Percebe-se em iubilatio e nos exemplos relacionados acima uma clara distinção entre duas áreas conceituais no âmbito do sentido. Eyolf Østrem refere a essas áreas conceituais como “opostas entre si: a do sentimento e a do pensamento racional” (ØSTREM, 2002, p. 292). No contexto da tradução multimodal, em que formas de significação, ou recursos semióticos, se agrupam para compor o todo, porém, essas áreas estão mais para complementares do que para opostas. Há uma lacuna de difícil transposição entre sentimento e pensamento racional quando se trata de tentar traduzir um pelo outro, particularmente se isso tiver de ser feito com o emprego de recursos semânticos. Ainda assim, abordar essas áreas como complementares contribui para uma melhor compreensão do sentido que elas contêm e que delas faz uso em sua manifestação.

Um ponto crucial na argumentação de Østrem é a leitura que o autor faz da discussão de Santo Agostinho sobre iubilatio. Østrem argumenta que as áreas conceituais de sentimento e pensamento racional “são contrastadas e atadas em diferentes níveis, sendo que o principal contraste está entre o que pode e o que não pode ser expresso em palavras” (ibidem, p. 292). O pensamento racional é identificado com entendimento conceitual, verbal, explica Østrem, ao passo que a emoção é identificada com o inefável.

Na sequência, Østrem indica outro nível de contraste e ligação em que está a identificação da emoção com o aural, o sensorial, no sentido de ser perceptível pelos ouvidos. Por consequência, o sensorial contrasta com o conceitual (ibidem, p. 292). Metonimicamente posto, ouvido e boca contrastam, aquele o sensorial, esta o conceitual, verbal. A seguir, o autor declara que

Agostinho justapõe as áreas do sentimento e do pensamento racional: ele identifica o racional com aquilo que pode ser expresso com palavras (isto é, o verbal, ou conceitual), e compara o coração (os sentimentos) com o ouvido, com a música ou, de modo mais geral, com o sentido mais amplo de arte como a beleza criada por humanos. Ainda que a esfera dos sentidos esteja separada do conceitual e do racional, ela possui seu próprio entendimento, que está associado com a experiência sensorial do som. De modo mais geral, isso significa que a linguagem dos sentimentos só pode ser entendida em seus próprios termos, ela não pode ser racionalizada (grifo nosso). “O som é o entendimento do coração”, ou seja, o entendimento do coração só pode ser alcançado ou expresso através do som  (ØSTREM, 2002, p. 292).

A impossibilidade de racionalizar a “linguagem dos sentimentos”, algo que o materialismo eliminacionista espera que o avanço da neurociência neutralize, permanece incólume desde sempre. A área conceitual se presta muito bem à comunicação com base semântica, mas é insuficiente para verter o sensorial, os sentimentos, o coração e a arte musical que deles emana. Embora sejam áreas complementares, o conceitual é de natureza diferente e tão adequado para conter o “entendimento do coração” (sonus enim cordis intellectus est)39F[2] quanto seria uma peneira para transportar água.

Os sons musicais resultam do processamento de sentido no âmbito de sentimentos inefáveis. A música está apta a significar sem palavras e, conforme expresso por Santo Agostinho em iubilatio, “se desvia das sílabas das palavras” (ibidem p. 291) na direção de sons não verbais como recursos de expressão. A mesma natureza inefável de que se constitui a música está presente em outras formas de arte. A transferência de sentido entre as artes poderia ser nomeada tradução interartística.

Um exemplo de tradução interartística seria a já citada obra musical Lamentate, de Arvo Pärt, como tradução interartística da escultura Marsyas, de Anish Kapoor (vide p. 52). A pesquisadora Debbie Moss, também já citada, entende que tal tradução interartística tem na natureza de suas mídias um desafio adicional, posto que escultura e música não empregam “linguagem semântica” e não são passíveis de citação direta (MOSS, 2013, p. 136). A citação direta a que a autora parece referir é possibilidade de identificar correspondências (ou equivalências) inequívocas entre a obra fonte e a obra alvo. Entretanto, a pessoa que traduz certamente seria capaz de estabelecer essas relações e citá-las de modo direto, tanto quanto a linguagem semântica o permita. Evidência disso está na declaração de Arvo Pärt sobre a transferência de sentido da escultura de Kapoor para sua obra para piano e orquestra.

Morte e sofrimento são os temas que preocupam cada pessoa nascida neste mundo. A maneira como a pessoa lida com essas questões (ou falha em lidar) determina sua atitude para com a vida. (…) A barreira entre tempo e não-tempo já não parece tão importante. Essa é a matéria em que se fundamenta minha composição Lamentate. (…) Na presença da obra de Anish Kapoor (…) eu percebo uma completude em sua forma harmoniosa e tão naturalmente fluida e no efeito paradoxal de suas dimensões gigantescas em contraste com sua leveza flutuante. Com sua forma que lembra um trompete, a própria escultura Marsias sugere música. (…) Anish Kapoor capturou de maneira notável o elemento trágico do mito grego Marsias. Foi esse aspecto trágico que me inspirou e forneceu a base para minha composição. (…) Minha música não foi concebida nem como ilustração nem como decoração da escultura; ela se concentra em sua própria substância puramente musical para comunicar a mensagem que associo com a criação de Anish Kapoor.

Arvo Pärt (2002, n. p.)

Nessa declaração sobre a obra LamenTate, Arvo Pärt de certo modo mapeia as camadas de interesse na obra fonte a serem representadas na obra alvo. Os termos harmonia, sofrimento, forma, trágico, grandeza, leveza, fluidez e morte dão conta dos conceitos transpostos para música de Pärt. A Figura 14 apresenta uma concepção artística do que estaria envolvido na tradução da escultura para peça sinfônica. Basicamente, os conceitos destacados por Pärt acentuam movimento (fluidez e leveza), conformação (harmonia, grandeza e forma) emoção (sofrimento, trágico) e silencio (morte), que são aspectos passivos de representação através da “substância puramente musical” (ibidem). Os conceitos destacados por Pärt partem de uma seleção feita pela área conceitual do pensamento racional com o objetivo de estruturar a representação de algo majoritariamente derivado da área conceitual do sentimento. Tendo presente esse exemplo de integração das áreas conceituais do pensamento racional e do sentimento, considere a argumentação que segue sobre oposição entre razão e sentimento.

Figura 15 – Esquema de camadas transpostas da escultura Marsyas para a peça LamenTate.
Foto à esquerda: Escultura de PVC e aço 35x23x155m. (KAPOOR, 2002, n.p.)

Østrem caracteriza as áreas conceituais de sentimento e pensamento racional como opostas entre si (ØSTREM, 2002, p. 292). O termo “oposto” deriva do latim oppositus, particípio passado de oppono, que é constituído pela preposição ob + ponere (verbo). “Como prevérbio, a preposição ob significa: contra (com ideia de hostilidade)” ao passo que ponere tem o sentido de “pôr de lado, depor, afastar” (FARIA, 2003, p. 659, 682, 766). Em português, o adjetivo “oposto” qualifica um substantivo de acordo com sua posição espacial, como na declaração “o Polo Norte é oposto ao Polo Sul”. Esse uso não está carregado da ideia de hostilidade que o adjetivo “oposto” pode carregar, como ocorre nos casos de oposição política, por exemplo, da qual o antagonismo, a beligerância e a combatividade são fatores cativos. Assim, o termo oposto pode significar uma relação espacial ou uma relação ideológica. É fácil perceber que, no âmbito do sentido, que contém as áreas conceituais de sentimento e pensamento racional, a relação espacial é pouco pertinente. A oposição percebida por Østrem no texto de Santo Agostinho parece estar primariamente associada à disparidade e incompatibilidade.

Qual seria uma maneira alternativa de abordar a relação entre as áreas conceituais de sentimento e pensamento racional? Se pensarmos no sentido como uma célula nervosa, os centros de processamento do pensamento racional e do sentimento seriam componentes do núcleo que trabalham em harmoniosa integração. Os dendritos representariam o conjunto de instrumentos que compõem nossa capacidade sensorial total, ao passo que o axônio seria nosso canal unificado de expressão que tria e distribui o fluxo comunicativo segundo sua natureza e propósito a múltiplos pontos de entrega que chamaríamos sinapses. A célula nervosa teria características de um sistema modular. Ao invés de opostos, os módulos do sistema trabalham em harmonioso conjunto. O que ocorre nos “módulos” de pensamento racional e sentimentos é análogo ao funcionamento das partes da célula nervosa.

As funções das áreas conceituais do pensamento racional e do sentimento não raro se sobrepõem. Se, por um lado, o “módulo” do sentimento prescinde de palavras para ser expresso, isso nem sempre acontece. Expletivos e interjeições empregam palavras e podem ser compreendidos racionalmente, mas seu significado depende primariamente do contexto. Um xingamento que expresse o sentimento de frustração procede mais da necessidade de expressar o sentimento do que de comunicar um pensamento racional. Por outro lado, o pensamento racional está frequentemente mesclado pela influência que a área conceitual dos sentimentos exerce sobre ele. Por exemplo, se um casal discute sobre frustrações e desapontamentos, a escolha de palavras e a prosódia pode variar segundo o sentimento dominante, seja ele raiva, rancor, ciúmes, tristeza ou outro. Portanto, ao invés de áreas conceituais opostas, sentimento e pensamento racional são áreas conceituais mutuamente complementares.

De que modo isso poderia afetar a compreensão dos mecanismos, se assim os pudermos chamar, empregados na tradução, particularmente na multimodal e na interartística? Em primeiro lugar, estaríamos olhando para o núcleo de processamento do sentido como uma unidade, como quem, ao examinar uma célula, se preocupa não apenas com a função isolada do Complexo de Golgi, por exemplo, mas em como este funciona em seu ambiente e nas relações que mantém com os demais componentes da célula. Como argui nas páginas anteriores, o método analítico seria menos eficaz do que uma abordagem holística para a compreensão de sistemas complexos porque a abordagem analítica pode desperceber propriedades emergentes do sistema. O conceito filosófico de “propriedade emergente” é explicado de maneira acessível em outro episódio da série Star Trek: The Next Generation, em um diálogo entre o tenente comandante Data (Brent Spiner) e o comandante Geordi La Forge (LeVar Burton).

Data: Às vezes, sistemas complexos podem se comportar de maneiras completamente imprevisíveis. O cérebro humano, por exemplo, pode ser descrito em termos de funções celulares e de interações neuroquímicas, mas essa descrição não explica a consciência humana, uma capacidade que excede em muito as simples funções neurais. A consciência é uma propriedade emergente.

Geordi: Em outras palavras, [a propriedade emergente é] algo que é mais do que a soma de suas partes.40F[3]

— (Star Trek: The Next Generation – Emergence, 1994)

O campo da tradução é um terreno fértil, propício e convidativo para as propriedades emergentes. O processo tradutório une as experiências representadas no texto fonte com as experiências da pessoa que faz a tradução, em um novo contexto. No caso da tradução multimodal, além dos fatores “tradutor” e “contexto”, mídias de naturezas diferentes requerem as propriedades emergentes.

Que dizer da tradução envolvendo sentidos processados na área conceitual dos sentimentos? O ser humano é capaz de perceber sentimentos e se sentir contagiado por eles. Sendo assim, tal contágio poderia dar origem, na obra traduzida, a propriedades não observadas na obra fonte e nem no arcabouço da pessoa que a traduz. Considere, por exemplo, a observação do contraste entre as reações de pessoas ao texto cômico na forma escrita (com significado semântico) e as reações a uma exibição teatral cômica (semântico + semiótico = multimodal) poderia induzir à intuição de que a força de propagação do sentimento se manifesta com maior impacto do que a do pensamento racional. Essa sensibilidade a sentidos desprovidos de carga semântica seria uma variável propícia ao surgimento de propriedades emergentes. Naturalmente, a migração entre mídias seria igualmente propícia. A tradução da arte na escultura de Anish Kapoor pela música de Arvo Pärt articula o sentido do trágico em uma instância de materialização diversa que agrega suas propriedades particulares à obra meta.

Em suma, inefável é um conceito que pode ser atribuído a algo que não pode ser pronunciado (1) por causa de uma limitação articulatória da fala, (2) por causa de uma negação consciente da predicação ou (3) porque o sentido do que se deseja expressar transcende a palavra. Os sentimentos e as emoções expressos pela arte tendem a se encaixar no aspecto do inefável que transcende a palavra. A transposição interartística de sentido, portanto, tem de operar no âmbito do inefável. Isso (o inefável), as naturezas diversas das substâncias de cada arte, que requerem mídias diferentes, os contextos espaço-temporais e o arcabouço intelectual de quem faz a tradução propiciam o surgimento de propriedades emergentes. Assim, a tradução multimodal dificilmente representaria a obra alvo como reflexo idêntico da obra fonte.

Abordei brevemente, neste capítulo, a tradução de escultura para música em que o tradutor se baseou em conceitos selecionados a partir do código fonte para representar musicalmente a mensagem que a escultura lhe transmitira. O próximo capítulo apresenta a análise de uma peça musical como tradução de arte fotográfica. Diferentemente do caso abordado neste capítulo, a estratégia de tradução a analisada no próximo capítulo busca no texto visual a principal referência representativa para o código aural. Faz isso, entretanto, sem desperceber outras camadas de referência, como a do sentimento, por exemplo. Antes, porém, a primeira parte do próximo capítulo trata de premissas metodológicas que pautam este trabalho.


[1] O episódio se passa na data estelar 46982.1 (CAREY, 1993), correspondente a 3 de outubro de 2369, pelo calendário gregoriano (CHANG, s.d.).

[2] “O som é o intelecto do coração” (ØSTREM, 2002, p. 291).

[3] Tradução minha da gravação (trecho compreendido entre as marcas de 19’37” e 19’59”) em vídeo do episódio 23 da sétima temporada de Star Trek: The Next Generation, intitulado Emergence, que foi ao ar pela primeira vez nos E.U.A., em 9 de maio de 1994.