Uma definição do termo “texto”

Embora o termo “texto” seja mais frequentemente associado à escrita, a origem desse termo permite a inclusão de formas não linguísticas em sua definição. A palavra “texto” deriva do latim textus, que é a origem compartilhada de tecido, textura, têxtil e tecer. Assim, em sua origem, ela contém a ideia de desenvolver uma trama em que fios são ordeiramente dispostos para formar uma rede de pontos, como se faz na fabricação de tecido.

O exemplo mais antigo de que se tem registro desse uso metafórico do termo texto, do latim textum, vem da “Instituição Oratória” (9.4.17), onde Quintiliano (c. 35 a c. 100 AD) compara o estilo de composição de Lísias “a um tecido liso e suave” (QUINTILIANO, 2016, p. 539). Portanto, era metafórico o uso do termo “texto”, uso este que se fundamentava na analogia entre o ato de tecer e a ordenação de ideias em palavras para construir uma narrativa19F[1]. Com a lexicalização desse termo, seu significado primário refere a um conjunto semiótico ordenadamente construído a partir recursos visuais (imagens), aurais (sons), e verbais (linguagem).

Discorrendo sobre o texto multimodal, Sara Dicerto explica que linguagem, imagens e sons podem ser usados para criar textos autônomos, independentes uns dos outros. Ela argumenta que se trata de “três sistemas semióticos perceptivelmente independentes cuja investigação é respaldada por relevante literatura ao ponto de serem fundamentais ao entendimento dos textos multimodais” (DICERTO, 2018, p. 18). Os textos multimodais seriam construídos, portanto, a partir dos sistemas semióticos verbal, visual e aural.

Esses três sistemas semióticos são suficientes para a construção de texto na maioria das situações comunicativas que fazem parte da experiência humana cotidiana. Entretanto, avalio que eles não constituem um catálogo completo de possibilidades de emprego de conjuntos semióticos para criação de texto. O sistema tátil seria uma ausência importante nesse conjunto. Utilizado na comunicação com e entre pessoas com impedimento visual-auditivo, o sistema semiótico tátil escapa da definição de sistema verbal (comumente entendido como fala e escrita), de sistema visual e de sistema aural. Desde o ensaio seminal de Roland Barthes (1977, p. 32-51), a literatura sobre texto multimodal é consistente em não incluir o sistema tátil no conjunto dos modos possíveis de texto. Isso talvez se deva ao número relativamente pequeno de interações comunicativas dependentes do sistema tátil. Ainda que relativamente pequeno, entendo que o vulto dessas interações é importante20F[2] e que sua inclusão no conjunto dos sistemas semióticos multimodais é pertinente. Não obstante essa e outras possíveis lacunas na literatura, a tríade multimodal composta pelos sistemas semióticos verbal, visual e aural fornece subsídios suficientes para o propósito deste trabalho.

O grau de multimodalidade de determinado texto depende da disponibilidade e da viabilidade de emprego de recursos semióticos adequados às necessidades comunicativas. Para comunicar ironia, por exemplo, o texto pertencente ao sistema semiótico verbal na tirinha do cartunista Quino, exibido na Figura 4  (TEJÓN, 2015, p. 13), necessita do sistema semiótico visual. Inversamente, o visual é incompleto sem o verbal. Dessa forma, os textos multimodais se caracterizam por dispor de recursos semióticos provenientes de dois ou mais sistemas para comunicar sua mensagem.

O grau de participação de cada sistema textual (visual, aural e verbal) na comunicação do sentido varia em função de fatores sociais. Dentre tais fatores, Gunther Kress (2010, p. 1-4) acentua as necessidades comunicativas, a identidade institucional e as questões de poder. As necessidades comunicativas variam de acordo com o contexto. Os sinais de trânsito, por exemplo, suprem a necessidade comunicativa de transmissão rápida de informação, sem concorrer pela atenção do motorista, que precisa manter o foco na direção. A identidade institucional e as questões de poder influenciam na seleção dos sistemas textuais e podem ser determinantes na distribuição do espaço destinado à informação que se comunica e à identidade visual da entidade que emite o comunicado.

Exemplo texto multimodal
Figura 4 – Mafalda (TEJÓN, 2015, p. 13)

A taxonomia de sistemas semióticos, a meu ver, impõe obstáculos à análise do “texto” multimodal. Ela é excludente, como observado no caso do sistema semiótico tátil, e restritiva, na medida em que a tentativa de delimitar e definir domínios de sistemas semióticos obstrui uma visão panorâmica sobre a questão. Considere, como exemplo, o caso da obtenção de cores pela mistura de cores primárias. A partir da mistura de ciano e amarelo obtém-se a cor verde. Da mistura de magenta e ciano obtém-se o azul. De amarelo com magenta resulta o vermelho e da mistura de todas essas cores resulta o preto. A tríade subtrativa (assim chamada porque com a mistura dessas cores e das cores primárias verde, azul e vermelha subtrai-se toda reflexão de luz, que enxergamos como preto) composta por ciano, magenta e amarelo poderia ser comparada à tríade de sistemas semióticos (verbal, visual e aural). De maneira análoga ao que ocorre na formação da cor azul pela mistura de magenta e ciano – isto é, cria-se uma entidade autônoma, ou recurso independente – o uso simultâneo de sistemas semióticos distintos, verbal e visual, no caso da tirinha de Quino, na Figura 4, resulta na criação de uma nova entidade textual, um novo recurso semiótico que preserva características do sistema verbal e do sistema visual, mas que, ao final e ao cabo, é distinto de ambos os recursos primários empregados em sua criação. Uma análise da cor verde que a tomasse como uma composição de duas cores primárias subtrativas, e não como uma entidade autônoma e independente, apenas dificultaria e obstruiria desnecessariamente tal análise.

Figura 5 – Mistura subtrativa de cores
Fonte: (CANTUS, 2004)  CC BY-SA 3.0 – disponível no repositório digital da Wikimedia Commons.

Em suma, o termo “texto” refere a uma unidade comunicativa, ordenada e construída a partir de recursos semióticos verbais, visuais e aurais. Embora a literatura, em geral, não inclua o sistema semiótico tátil no conjunto dos modos de significação, entendo que tal omissão constitui uma lacuna importante na taxonomia dos sistemas semióticos.

Como exemplos do termo “texto”, conforme empregado nesta dissertação, serviriam este trabalho escrito ou uma defesa oral dele (verbal), o quadro “Cesta de Frutas”, de Giuseppe Arcimboldo (visual) e a “Sinfonia n. 1”, de Johannes Brahms (aural). No entanto, essas experiências textuais tendem a transcender barreiras taxonômicas, sejam elas verbais, aurais ou visuais. Esta página emprega múltiplos recursos estéticos visuais, nomeadamente, os espaços entrelinhas, o tipo, as cores e o tamanho das fontes, as margens e recuos, as figuras, quadros, tabulações, títulos e subtítulos. De modo similar, uma defesa oral deste trabalho teria a óbvia contribuição de recursos aurais e visuais, na entonação, modulação, ênfase segundo o sentido, gestos, postura e mesmo a vestimenta de quem apresentasse a defesa. Tantos são os recursos estéticos visuais empregados na caracterização de um trabalho acadêmico que a declaração acima, de que se trata de um texto verbal, poderia ser dita incompleta.

Nos casos das obras ditas “visual” e “aural”, essa miscigenação taxonômica talvez seja menos evidente. A sinfonia de Brahms, composta ao longo de mais de 20 anos, entre 1854 e 1876 (SANTOS, S. d.), evoca recursos semióticos visuais, seja nas partituras, seja na conformação orquestral necessárias à sua execução. A presença e atuação da orquestra no palco e o gestual do maestro ao reger são poderosas fontes de informação visual, quer para os músicos, quer para a audiência. Ainda que se argumente que esses elementos visuais não fazem parte da peça propriamente dita, sua completa dissociação de fato parece difícil. Além disso, a notação musical (a partitura) contém elementos do código verbal escrito.

A objeção a isso, de que a música é fugaz e que sua existência depende da vibração sonora que a produz, é pertinente. Entretanto, da mesma maneira que uma pessoa alfabetizada pode “ouvir” uma obra literária sem necessidade de um ruído sequer, uma pessoa treinada pode “ouvir” cada compasso de uma peça musical sem a necessidade de qualquer instrumento e sem qualquer vibração sonora, a partir da leitura da partitura. Se a música deixa de existir quando cessam os sons, não deixaria a obra literária de existir quando se fecham os livros? Acrescente-se a isso que a disseminação de livros eletrônicos, se por um lado amplia o alcance e facilita o acesso à obra literária, por outro lado a priva da materialidade de papel e tinta. Se a obra literária continua uma existência em suspensão depois de desligados os computadores e os dispositivos para leitura de livros eletrônicos, não pode ser a materialidade a responsável por essa estase, posto que os dispositivos eletrônicos reproduzem os arquivos eletrônicos via cômputo de dados imateriais. Em vista do acima, parece razoável arguir que a sinfonia de Brahms, tal como uma obra literária, especialmente com o advento dos arquivos eletrônicos, transcende delimitações taxonômicas e que seus “apêndices” visuais lhe atribuem características de texto multimodal.

Figura 6- Cesta de Frutas / Public domain (ARCIMBOLDO, 1550)

No que diz respeito ao terceiro exemplo de texto, o quadro de Arcimboldo, trata-se de uma obra que emprega exclusivamente recursos semióticos visuais. A obra maneirista (WIKIART – VISUAL ART ENCYCLOPEDIA, S.d.) do final do século dezesseis articula a ressignificação dos componentes visuais a partir da orientação do objeto. Diferente de uma obra abstrata, que se afasta e afasta seus expectadores da linguagem, essa obra provoca a linguagem com sua seleção de coisas comuns para reproduzir a face humana, possivelmente a primeira coisa que um ser humano vê e a mais familiar. Ainda assim, visto não haver emprego, na obra propriamente dita, de recursos textuais dos modos verbal ou aural, essa obra parece contida nos domínios dos recursos semióticos visuais.


[1] O Dicionário Oxford de Latim corrobora o uso metafórico dos termos textum e textus. Essa obradefine textum como “pano, tecido”, “estilo ou padrão de tecer” (…) peça de trabalho trançado”, metaforicamente aplicado a estilo de retórica. O termo textus é definido como “padrão ou estilo de tecer (…), tecido feito pela junção de palavras, o corpo de uma passagem” (OXFORD UNIVERSITY PRESS, 1968, p. 1935).

[2] Nos Estados Unidos, por exemplo, um relatório sobre número de crianças e jovens adultos (até 21 anos de idade) com surdo-cegueira, contados no sistema educacional americano, indica que entre os anos 1995 e 2005 havia cerca de 10.000 indivíduos, cada ano, com esse tipo de impedimento (KILLORAN, 2007, p. 14).