Conclusão

Na parte inicial desta dissertação, introduzi o problema da tradução de sentidos entre textos multimodais, cuja questão angular é a tradução multimodal envolvendo música. Em outras palavras, seria razoável afirmar que é possível traduzir escultura, pintura, fotografia e outros textos multimodais em música? Pode a música ser vertida em outras formas artísticas? Essas perguntas, de certo modo, nortearam o trajeto deste trabalho.

A primeira etapa da pesquisa envolveu o levantamento de bases teóricas adequadas à análise do tema em pauta. Em seguida, busquei exemplos de obras musicais cuja composição fora declaradamente um ato tradutório ou que, pelas características distintivas de elaboração, fossem contempladas pelo arcabouço teórico delineado para a análise da tradução multimodal. O capítulo sobre “o inefável” constitui uma propriedade emergente (p. 103) da harmonização entre base teórica e evidência empírica, posto que esse capítulo não estava previsto no escopo inicial do projeto, mas se tornou, segundo avalio, indispensável às conclusões nesta seção.  A última fase desta dissertação envolveu trabalho minucioso de comparação de perfis musical e fotográfico. Ressalto que o objetivo deste trabalho não é suprir respostas definitivas para as questões que nele abordo. É, antes, parte da busca por um modelo não cartesiano para a compreensão dos processos tradutórios multimodais envolvendo música e outros modos textuais. Assim, as considerações finais que seguem, e que resultam de muitas reflexões ensejadas pelo trabalho de pesquisa, apresentam minhas conclusões a respeito do enquadramento da transferência de sentido entre música e os modos textuais visual e verbal nos modelos teóricos da tradução multimodal.

 A tradução envolvendo arte tem características particulares jazentes no que seriam “pontos cegos” da terminologia dos Estudos da Tradução. Consequentemente, a clareza nas definições de tradução entre textos majoritariamente verbais (literária e especializada, basicamente) inexiste no campo da tradução multimodal. De fato, nem mesmo sobre o emprego do termo “multimodal” há consenso, já que alguns autores preferem termos como “tradução intersemiótica”, “transmutação”, “transdução” e outros, para referir ao que neste trabalho recebe o nome de “tradução multimodal”.

Haroldo de Campos, em seu texto Da tradução como criação e como crítica45F[1], trata do problema envolvendo a tradução de texto artístico e afirma que, para si, “tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca” (CAMPOS, 1992, p. 33). Embora o autor destinasse suas reflexões primariamente a aspectos da literatura, seus comentários tratam de conceitos que parecem adequados a outras formas de arte. Haroldo de Campos desenvolve sua argumentação sobre o princípio defendido por Albercht Fabri de que “a essência da arte é a tautologia” (ibidem, p. 31). Ou seja, a obra de arte seria fechada em si mesma. A arte não teria o objetivo da representação, ela simplesmente é, afirma o autor. Essa talvez fosse a base para a afirmação de Stravinsky de que a música é impotente como forma de expressão (vide p. 67).

Falando sobre a intraduzibilidade da obra de arte, elaborando seus argumentos em consonância com Max Bense, Campos explica que a “informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista” (ibidem, p. 33). A tradução da obra de arte seria, portanto, a tarefa impossível do tradutor. Segundo Campos,

Numa tradução dessa natureza [cheia de dificuldades], não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim, tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele “que é de certa maneira similar àquilo que denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois no avesso da chamada tradução literal”.

Haroldo de Campos (1992, p. 35).

A percepção da ausência de linguagem semântica como problema adicional para a tradução interartística/multimodal, ou recriação, para Haroldo de Campos (ibidem, p. 33), decorre da moldura teórica em que o termo tradução se fixou, moldura esta que tem a significação semântica como elemento fundamental. Apesar das diligências para desconstruir essa moldura, prevalece a visão de que a falta de significado semântico é um problema. De fato, quando Jakobson atribui à tradução interlingual o status de “tradução propriamente dita” – grifo meu – (JAKOBSON, 1959, p. 233), inadvertidamente, o autor nutre a raiz de um pré-conceito. A preparação do caminho para a experiência completa da tradução interartística, segundo entendo, requer a reorientação de conceitos fortemente enraizados. A ideia de que tradução tem de passar pelo semântico é um desses conceitos.

Outro obstáculo a ser removido é o lugar-comum de que sentimento e pensamento racional são entidades opostas. O argumento no excerto de Campos (1992, p. 35) supera a recorrência do semântico como obstáculo à tradução multimodal envolvendo música (vide p. 24). A relevância do semântico no “avesso da tradução literal”  (CAMPOS, 1992, p. 35) é mínima e não constitui obstáculo à tradução. Mas o que dizer de estabelecer as relações entre o texto fonte e o texto alvo nesse tipo de tradução?

Tomando novamente a obra LamenTate (p. 46) como exemplo, parece plausível que alguém que reúna em seu arcabouço intelectual profundo conhecimento dos princípios de estética musical e de escultura consiga estabelecer relações e, quiçá, fazer citação direta de elementos da obra fonte em sua relação com a obra alvo. Admitindo que isso seja possível, tais citações seriam apenas relativas a uma camada primária do sentido. O cerne do lamento está concentrado em “sua própria substância puramente musical” (PÄRT, 2002, n.p.), no trágico essencialmente inefável. A instância do sentimento na música de Pärt deságua na relação entre as áreas conceituais do pensamento racional e das emoções.

A desconstrução da ideia de oposição entre sentimento e razão é medida importante na reorientação da moldura teórica dos Estudos da Tradução, particularmente no que toca tradução intersemiótica, multimodal e interartística. Não que inexistam propostas nesse sentido. Elas existem, são numerosas e bastante plausíveis, mas não são unanimemente aceitas e menos ainda adotadas, o que parece indicar que a reorientação daquela moldura está em andamento. De um modo ou de outro, a percepção de que a área conceitual de pensamento racional é oposta à área conceitual do sentimento, conforme a percebo, cria mais obstáculos do que abre caminhos para compreender a maneira em que se processa e comunica o sentido e, por extensão, os processos tradutórios pertinentes.

Um impacto dessas considerações nos modelos teóricos para a compreensão sistêmica da tradução entre recursos semióticos não verbais seria a revisão da nomenclatura, no sentido de abarcar de modo mais consistente o processo de tradução de conteúdos de sentido não semântico. A compreensão da tradução é operada na área conceitual do pensamento racional. Se não houver termos inclusivos bem definidos e aceitos pela disciplina dos Estudos da Tradução, o alcance do pensamento racional será restrito e, por consequência, insuficiente ao tratamento das múltiplas possibilidades tradutórias existentes. A tradução é uma atividade social básica. Ao passo que inúmeros estudos foram e continuam a ser desenvolvidos sobre as áreas literária e especializada, a tradução multimodal e o que poderíamos chamar de tradução interartística carecem de modelos consistentes que as contemplem.

Por fim, sobre a análise da peça New York Skyline, à base das considerações neste trabalho, concluo que Villa-Lobos fez uma tradução multimodal, considerando que, do código fonte, o maestro selecionou camadas distintas, ou modos, de sentido, e as reproduziu em sua obra.  A primeira camada teria sido a impressão geral percebida a partir do exame da imagem na fotografia, o que desencadeou uma percepção psicológica frequentemente associada ao modo menor. Na construção do perfil melódico, Villa-Lobos fez a seleção de camadas imagéticas e escolheu pontos para compor os perfis melódico e harmônico da peça, correspondentes às camadas selecionadas. Vale notar que New York Skyline foi apenas uma dentre várias obras em que Villa-Lobos empregou o método “Melodia das Montanhas” para traduzir perfil gráfico em perfil musical. A (1) Sinfonia N. 6: Sobre a linha das montanhas (MLV 1990-21-0147), as peças (2) Serra da Piedade de Bello Horizonte (sem número de registro), (3) Corcovado (MLV 2000-21-0082), e (4) Pão de Assucar, Montanha Tatus (MLV 2000-21-0083), dentre outras, são exemplos da “técnica tradutória” de Villa-Lobos46F[2]. Admitindo o trabalho de Villa-Lobos na composição de New York Skyline como tradução, a transferência do sentido no texto visual para o texto aural, por empregar modos textuais distintos, constitui tradução multimodal.

Não obstante meus melhores esforços para encontrar informação consistente e confiável, uma limitação desta pesquisa foi a impossibilidade de localizar a imagem fotográfica usada por Villa-Lobos na composição de New York Skyline. O Anexo V contém manuscritos digitalizados (vide nota de rodapé n.º 47) com informações sobre diversas outras obras de Villa-Lobos em que a técnica “Melodia das Montanhas” foi empregada. Visto que alguns desses manuscritos contém indicações sobre data e autoria das fotografias, novas pesquisas sobre o assunto, com o uso desse material, possivelmente não enfrentariam a dificuldade de determinação do ângulo de captura da imagem com que me deparei na análise de New York Skyline. A impossibilidade de identificação do código fonte em relação à peça de Villa-Lobos, reconhecidamente uma limitação importante deste trabalho, não invalida as conclusões nesta seção.

Parece seguro, em vista de todas as considerações apresentadas, concluir que:

a tradução envolvendo música e as formas textuais visual e verbal é tão factível quanto a tradução de poesia;

a definição terminológica é matéria urgente e central para a tradução multimodal; e que

é necessária uma reformulação das teorias da tradução, com o fim de contemplar a tradução de recursos semióticos entre modos textuais.

Oxalá novas pesquisas e suas resultantes propostas corroborem, retifiquem, incrementem, ou mesmo neguem as conclusões acima. O que realmente importa, penso, não são as respostas, mas os caminhos pelos quais a busca de conhecimento nos leva. Se posso concluir com uma nota pessoal, anoto meu desejo de que as perguntas sem respostas sobre a tradução multimodal motivem outras mentes pensantes a oferecer sua contribuição em busca de possibilidades e de que a modesta contribuição nesta dissertação provoque questionamentos e novas incursões pelo fascinante campo dos Estudos da Tradução.


[1] Publicado originalmente na revista Tempo Brasileiro, n. 4-5, junho – setembro de 1963. Tese para o III Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, Universidade da Paraíba, 1962.

[2] Obras digitalizadas e gentilmente cedidas pelo Museu Villa-Lobos, durante a preparação deste trabalho. Para mais informações, vide Anexo V.