Justificativa: a contrapartida

Todo ser humano constrói significados a partir de recursos semióticos de modo inconsciente e continuamente. Em certo sentido, o ser humano é por natureza tradutor intersemiótico. Cada vez que contamos a alguém algo que observamos, algo que sentimos, descrevemos um ruído, falamos de dimensões, de cores, de texturas, de materiais, nossa fala é tradução. Por causa do modo corriqueiro e constante em que processamos sentidos multimodais, expressos através de recursos semióticos não verbais, para mim é surpreendente que pesquisadores ainda se debatam, particularmente no caso da música não verbal, na busca de um modelo teórico suficiente para a compreensão sistêmica da tradução intersemiótica/multimodal.

Há no campo de conhecimento sobre a tradução intersemiótica uma lacuna importante. Vários autores interessados na tradução intersemiótica apontam a falta de um modelo teórico que contemple uma compreensão sistêmica deste tipo de tradução. Aguiar e Queiroz (2009, p. 8), por exemplo, argumentam que há poucos trabalhos teóricos produzidos de modo sistemático e que esses poucos são principalmente descritivos, carentes de um modelo explicativo e dissociados dos resultados de estudos semióticos e dos Estudos da Tradução. Essa lacuna, apesar de receber crescente atenção e esforços na busca por um modelo teórico suficiente para analisar a tradução intersemiótica, ainda persiste.

Nossa limitada compreensão de como se processam as conversões de significados em nossa mente deveria ser impulso e justificativa mais que suficiente para o empreendimento desta e de outras pesquisas sobre o assunto. Quando não conhecemos o ser humano em nós, e admitidamente não o conhecemos bem, nos afastamos da humanidade para nos tornar autômatos que simplesmente fazem o que fazem, por um fazer sem sentido. Por outro lado, a mera busca de respostas a perguntas intrigantes é em si mesma muito proveitosa porque desperta e treina a habilidade de pensar criticamente.

A linguagem, como atributo da raça humana, deveria ser niveladora. A faculdade da linguagem transcende questões raciais, de gênero e outros elementos potencialmente segregadores. Naturalmente, fatores externos têm influência na percepção que as pessoas têm do mundo à sua volta e de si mesmas e na maneira como se expressam a respeito dessa percepção. Se imaginamos uma linha de produção do significado, na hipotética fase anterior à exposição do pensamento às influências externas ter-se-ia, em tese, a conformação do signo e as conversões de significados isentas das possíveis deformações causadas, na fase seguinte, pela influência do entorno. Será que isso realmente acontece? Que implicações isso teria na construção de significados e subsequente ressignificação através da tradução multimodal? A pesquisa teórica, por certo, não encontraria respostas satisfatórias para todas as perguntas cabíveis na lacuna existente nos Estudos da Tradução, na subárea da tradução intersemiótica/multimodal. Não obstante, compreendo que a realização desse tipo de pesquisa é necessária e tem muito a contribuir para os Estudos da Tradução.

Não se descarte a possibilidade de aplicação prática dos resultados desta e de outras pesquisas relacionadas ao tema da tradução intersemiótica/multimodal, ainda que o objetivo deste trabalho esteja enraizado nos domínios da pesquisa básica. A indústria do entretenimento poderia se beneficiar de um entendimento ampliado do impacto da tradução multimodal envolvendo música não verbal em produções para o cinema e para concertos musicais, por exemplo. A indústria da propaganda, que tem o poder de moldar a opinião pública e, com efeito, de alterar modos de vida, poderia também ser afetada significativamente, oxalá na criação de melhores práticas e código de conduta que respeitem e preservem as diferenças.

É importante ressaltar o crescente interesse nessa área de estudos. A teoria social-semiótica da multimodalidade, de Gunther Kress e Theo Van Leeuwen (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p. 54-78), é uma das propostas que têm servido de inspiração a pesquisadoras e pesquisadores que buscam compreender a tradução multimodal de recursos semióticos. Obras como Towards a model of intersemiotic translation (AGUIAR e QUEIROZ, 2009), Translation and Multimodality (BORIA, CARRERES, et al., 2020), Multimodal Pragmatics and Translation (DICERTO, 2018), Metacreations (GORLÉE, 2010), Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication (KRESS, 2010), Música, semiótica musical e a classificação das ciências de Charles Sanders Pierce (MARTINEZ, 1999), Music, text and translation (MINORS, 2013) e Speech, Music, Sound (VAN LEEUWEN, 1999), para citar algumas, têm em comum compor o catálogo do estado da arte sobre a tradução multimodal. Abordando direta ou indiretamente a música como recurso semiótico no âmbito da tradução, cada estudo empenhado na produção científica sobre a tradução multimodal contribui com subsídios importantes para a argumentação neste trabalho.

Portanto, as justificativas para esta pesquisa incluem a satisfação da sede de conhecimento e da curiosidade que nos tornam humanos, o desenvolvimento da capacidade de pensar criticamente a tradução e a necessidade de melhorar o mapeamento de processos cognitivos relacionados com operações mentais corriqueiras e constantes na interação que temos com os signos à nossa volta. De um ponto de vista mais pragmático, aponto usos em potencial do conhecimento aqui organizado em benefício das áreas de entretenimento e de comunicações fortemente dependentes de recursos semióticos não verbais. Por fim, esta pesquisa se justifica como instrumento de projeção de uma visão contextualizada no Brasil, com suas peculiaridades musicais e cultura geral, sobre os estudos da tradução multimodal.