Estado da Arte

Vários autores já citados neste trabalho manifestaram interesse no problema da tradução multimodal. Daniella Aguiar e João Queiroz escreveram o artigo Towards a model of intersemiotic translation (AGUIAR e QUEIROZ, 2009). Nesse artigo, os autores argumentam que a “tradução intersemiótica representa um domínio criativo especial de procedimentos e práticas da linguagem”. Acrescentam que, apesar da relevância teórica do tema e frequência corriqueira com a tradução intersemiótica é realizada, à época da escrita do artigo, o fenômeno permanecia inexplorado, no sentido inexistir um modelo conceitual suficiente. Assim, Aguiar e Queiroz propõem uma abordagem da tradução intersemiótica baseada no modelo triádico assimétrico do signo, de Charles C. Peirce.

Dinda Gorlée, em seu artigo Metacreations (GORLÉE, 2010), defende a ideia de que uma reprodução secundária do texto fonte, chamada de “tradução intercódigo” ou “metacriação intermídia”, é criada pela intersemiótica. Ela define metacriação como câmbio interartístico, criação cultural literária, musical, escultural, gráfica, metatextos integrando revisões da audiência ou do tradutor. Em seu trabalho, Gorlée procura demonstrar a unificação tipológica das “linguagens” verbal e não verbal.

No capítulo 4 do livro Music and Translation: new mediations in the digital age, intitulado What is translated? Styles, genres and more,Lucile Deblache explica que os formalistas entendem a música como autorreferente e que todo conteúdo extramusical é criado pelo ouvinte e não faz parte da música em si mesma(DESBLACHE, 2019, p. 107). Desblache afirma que é possível abordar a tradução de uma língua artística “estrangeira” em linguagem musical (tradução interartística, portanto) como écfrase (ibidem p. 110). Em resposta à pergunta “pode a transferência de mensagens entre diferentes formas artísticas ser chamada de interpretação, mediação ou mesmo tradução em seu senso mais abrangente?”, a autora cita as 5 “leis” formuladas por Peter Dayan35F[1]  sobre o que este chama de “estética interartística” para avaliar o que seria a tradução interartística: (1) a obra de arte tem de ser considerada um objeto, e não um conduíte para uma mensagem ou conceito; (2) a equivalência entre obras de mídias diferentes tem de ser incalculável; (3) a forma artística tem de ter valar atemporal e internacional além de sua origem tradicional; (4) as obras tem de ser únicas e originais; e (5) as artes em diferentes mídias têm de estar unidas por um propósito estético (ibidem, p. 111).

Helen Julia Minors abordou o tema Music translating visual arts, no capítulo 9 do livro Music, Text and Translation (MINORS, 2013, p. 107-120). Nesse capítulo, a autora explica que Erik Satie pensou na tradução para além da linguagem verbal, ao dizer “J’ai essayé de traduire muscalement”36F[2] (ibidem, p. 107). De acordo com Minors, a referência de Satie não era à tradução de sentido, mas a transferência de métodos técnicas e abordagens na criação artística (ibidem, p. 113). Sobre o estudo de caso que fez da obra tradutória de Satie, Minors explica que a tradução intersemiótica feita por Satie “explora os processos comuns entre música, texto e imagem” (ibidem). Minors acrescenta que, ao invés de uma transferência do sentido exato de imagem ou texto em música, “o processo multiartístico é muito mais interessante e variado”. Por fim, o conceito de seleção de camadas no código fonte a serem reproduzidas na obra alvo, proposto por Aguiar e Queiroz (2009), mas não citados pela autora, aparece no encerramento do artigo de Minors, ao afirmar que “Satie selecionou um elemento para criar equivalência ou para contrastar por inverter referências a fim de produzir contraste.

Algo comum observado por todos os pesquisadores e pesquisadoras que trataram da tradução intersemiótica, multimodal, interartística, que tive oportunidade de consultar é a queixa sobre a confusão em torno de nomenclatura e terminologia. A adoção de uma definição simplista para o termo tradução cria mais problemas do que os que resolve. Boria e Tomalin argumentam que uma definição sucinta, tal como a da Wikipedia, que declara que “tradução é a comunicação do significado de um texto em uma língua fonte por meio de texto equivalente em uma língua alvo”, oculta armadilhas complexas (BORIA e TOMALIN, 2020, p. 1). Ao passo que reconhecem que o problema da delimitação do conceito de tradução não é novo, os autores ressaltam que “em anos recentes, tem havido crescente inquietação em torno das fronteiras que determinam o escopo do que tem sido tradicionalmente classificado como tradução” (ibidem, p. 3). Como observado por Boria e Tomalin, “não existe consenso sobre os tipos de (re)comunicação de significados que podem ser autenticamente classificados como tradução”, especialmente se “as formas de comunicação foram categoricamente multimodais37F[3] (por exemplo, se envolvem mais do que meramente a escrita)”. Os autores argumentam que a intensificação do uso de recursos semióticos multimodais, resultante da disponibilidade de novas tecnologias, da interação entre globalização e localização e da proliferação sem precedentes de uma rede de fatores sociais, econômicos e culturais, requer com urgência “uma consideração com foco na tradução em contextos multimodais” (ibidem, p. 3, 4). Ao passo que há estudos detalhados sobre multimodalidade nas áreas de “psicologia, propaganda, mídias sociais, ficção, análise do discurso, crítica literária e jogos (…), pouquíssima atenção tem sido dada ao impacto da comunicação multimodal sobre a teoria e a prática da tradução” (ibidem, p. 5).


[1] Dayan, P. (2011). Art as music, music as poetry, poetry as art, from Whistler to Stravinsky and beyond. London: Routledge.

[2] “Eu tentei traduzir musicalmente”.

[3] As premissas centrais da pesquisa multimodal, conforme Jewitt, Bezemer e O’Halloran (2016 p. 3, apud BORIA et al., 2020, p. 12) são: “(1) o significado é construído com diferentes recursos semióticos, cada qual com suas potencialidades e limitações; (2) a construção de significado envolve a produção de unidades multimodais; e (3) o estudo do significado requer a consideração de todos os recursos semióticos em uso para construir uma unidade completa”.