Modalidade na expressão musical
Theo Van Leeuwen observa que “a música é a forma mais abstrata de som (…) [mas] é sempre também sensorial” (VAN LEEUWEN, 1999, p. 177, 178). Isso parece contradizer o conceito de linguagem de baixo nível de abstração, considerado na seção anterior. Essa declaração de Van Leeuwen está situada em um contexto em que o autor trata do conceito de modalidade. Como exposto na página 46, o termo “abstrato” determina o afastamento de algo em relação a um referencial. Van Leeuwen argumenta que o grau de abstração de uma “verdade” é inversamente proporcional ao seu grau de articulação (ibidem, p. 161). No caso da “verdade visual”, quanto menor a articulação de uma imagem gráfica, tanto maior seu grau de abstração. Tome como exemplo, a imagem abaixo.
A articulação do sinal (ícone) na Figura 12 é mínima. A imagem comunica apenas o essencial, abstraindo toda informação supérflua à compreensão do sinal. Consequentemente, seu grau de modalidade abstrata é mais elevado.
Em linguística, argumenta Van Leeuwen, a função da modalidade é ajustar os graus de verdade de determinada declaração.
O termo “modalidade” refere aos recursos linguísticos para expressar tais graus de verdade, tais como os auxiliares modais pode, vai e deve, os advérbios modais como talvez, provavelmente e certamente e os adjetivos e substantivos modais (por exemplo, provável e probabilidade) e outros (ibidem, 156).
O grau de verdade da declaração modulada “parece que vai chover” é menor do que o da afirmação “vai chover”. Os recursos linguísticos de modulação, explica Van Leeuwen, são empregados “para negociar (ou renegociar) a verdade de representações, ou para impor verdades àqueles sobre quem exercem poder” com o objetivo de alcançar uma percepção compartilhada de como é o mundo, “uma concepção comum da realidade, que pode funcionar como base para julgamento e ação” (ibidem).
Citando Halliday, Van Leeuwen acrescenta que os recursos de modulação da linguagem permitem uma seleção entre tipos diferentes de verdade em relação a uma mesma proposição, a depender do contexto em que tal proposição é enunciada. Por exemplo, alguém que diga “eu sei que a Terra é plana” atribui grau maior de verdade para a proposição “Terra plana” do que alguém que diz “eu acredito que a Terra é plana”. Se feita em uma conferência entre pessoas que advogam tal ideia anticientífica, o grau de verdade atribuído à proposição “Terra plana” pelo modulador “sei”, seria mais elevado do que “acredito”. Os graus de verdade dessa mesma proposição, modulada por qualquer dos dois operadores modais (“saber” e “acreditar”), variariam para menores, caso ela fosse enunciada em uma reunião de pessoas sensatas.
Ainda que pareça óbvio, convém notar que os recursos linguísticos de modulação, nas formas moduladoras verbal (por exemplo: parece, pode ser, penso, acho, acredito, deve), adverbial (por exemplo: talvez, provavelmente, certamente, com certeza, se calhar) e substantival (por exemplo: provável, probabilidade), constituem apenas um conjunto de possibilidades modulatórias. A semiótica social, argumenta Van Leeuwen, “estendeu o conceito linguístico de modulação para além da linguagem, ressaltando a importância da comunicação não verbal na expressão de modulação” (ibidem, p. 158). A modulação sonora é uma dessas instâncias extralinguísticas em que recursos semióticos não verbais veiculam sentido. Kress e Van Leeuwen elaboraram uma teoria social-semiótica da multimodalidade (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p. 54-78) cujos conceitos-chave são cruciais para a tradução multimodal.
O que dizer, então, sobre a aparente contradição entre a afirmação de que a música tem baixo nível de abstração (p. 78) e a de que a música é a mais abstrata forma sonora (p. 78)? Ao examinar a modalidade do som, Van Leeuwen adota a mesma abordagem que usa para a modalidade visual. Ou seja, o grau em que diferentes parâmetros são empregados na articulação do som e o contexto determinam o peso de modalidade de determinado som. Por “grau de modalidade” do som, entenda-se o grau e o tipo de verdade que atribuímos a ele (VAN LEEUWEN, 1999, p. 170). A abstração da música se deve, conforme posto por Van Leeuwen, principalmente à racionalização do modo em que a música organiza tonalidade e tempo em sua representação (ibidem, p. 178). Dito de outro modo, toda representação musical de um tema qualquer precisa caber no esquema racional delimitado pela série harmônica e pelos padrões de tempo para cada nota.
Para Van Leeuwen, a música seria a mais abstrata forma sonora porque a racionalização de sua representação acarreta menor a articulação com aquilo que a música representa. A música teria a “capacidade (…) de capturar a essência subjacente daquilo que é representado, ou de representar seu sujeito de modo generalizado” (ibidem, p. 177). Assim, a aparente contradição se dissipa porque as premissas em pauta são diferentes. Em seu sentido básico, abstração é sempre relativa a um referencial. Ao arguir que a música é abstrata, Van Leeuwen adota como referência a representação de detalhes naturais de algo a ser representando em oposição a uma representação da essência de algo.
A afirmação de que a música tem baixo nível de abstração, na seção anterior, tem como referência o cerne da fábrica humana de sentimentos e pensamentos. Ao invés de contradizer uma à outra, essas ideias são complementares e contribuem para a compreensão da tradução multimodal envolvendo música como código em tradução. No contexto em que Van Leeuwen fala da abstração da música como forma sonora, o autor argumenta que a música é também sempre sensorial (ibidem, p. 178). Ou seja, a música opera na frequência das emoções. Isso harmoniza com a citação de Coltrane, por Patrick Juslin, de que a música prescinde da linguagem para falar à alma de quem a ouve (JUSLIN, 2019, p. 115).
A modalidade na expressão musical, conforme proposta por Van Leeuwen (VAN LEEUWEN, 1999, p. 156-188), apresenta estratégias articulatórias para uma representação simultaneamente abstrata (no sentido de adequação aos parâmetros musicais de tempo e tonalidade) e emotiva. A lista de parâmetros articulatórios de Van Leeuwen inclui (1) extensão tonal, (2) variedade duracional, (3) amplitude dinâmica, (4) profundidade perspectiva, (5) amplitude de flutuação, (6) amplitude de fricção, (7) amplitude de absorção e (8) grau de direcionalidade (ibidem, p.181). O uso estratégico desses parâmetros torna possível, segundo entendo, o tipo mais evidente de tradução multimodal envolvendo música.
A “natureza não-semântica abstrata” da música (MINORS, 2013, p. 108) é tida por alguns como motivo de sua rejeição como portadora de significado (vide p. 67). Se a música é impotente como forma de expressão, então ela nada traduz de outros modos textuais e nem pode ser traduzida. No entanto, a evidência sugere o contrário. Tome como o exemplo o tipo de representação musical que Van Leeuwen chama de “modalidade naturalística”, baseada na verossimilhança (VAN LEEUWEN, 1999, p. 181). Van Leeuwen explica que essa modalidade se apoia na amplificação dos parâmetros articulatórios para criar uma representação do cotidiano e da normalidade. As peças O Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos, e Pacific 231, de Honegger, seriam apenas dois exemplos da modalidade naturalística. Para alguém que já tenha visto e ouvido uma locomotiva a vapor, a música evoca o que esse ouvinte ideal perceberia se estivesse presente no evento representado.
Van Leeuwen argumenta que a modalidade naturalística do evento sonoro neutraliza a percepção do ritualístico e do formal, e a articulação do dramatizado e do carregado de emoção (ibidem, p. 179). Ao apresentar Pacific 231, Honegger teria tentado afastar sua obra do naturalismo puro e simples, ao afirmar ele não buscava imitar os ruídos da locomotiva, mas traduzir uma imagem mental e um prazer físico (uma emoção), através da construção musical (vide p. 49). Van Leeuwen argumenta que essa aparente defesa talvez visasse defletir possíveis acusações de que Honegger não tivesse sido fiel ao espírito abstrato-sensorial da música clássica. Com isso, conclui Van Leeuwen, Honegger “reforçava que o critério de verdade relevante da moderna arte musical é tanto abstrato como sensorial” (ibidem, p. 178).
A representação naturalística da tradução multimodal de música certamente torna mais fácil a identificação do código fonte em relação à obra meta. Seria como ter à disposição a versão bilíngue interlinear de um texto. A execução do texto alvo como que projeta uma instância do texto fonte, levando o ouvinte a produzir sua própria versão do que este perceberia se estivesse presente ao evento representado.
A tradução de Arvo Pärt, da obra de Anish Kapoor (p. 52), emprega maior abstração, no sentido de usar menos parâmetros articulatórios. A estratégia tradutória de Pärt adota a representação da ideia musical como modo de operação, conforme explicado pelo próprio autor (vide p. 101). Nesse caso, a referência ao texto fonte teria de ser guiada por alguém versado tanto na obra fonte como na obra meta. Entretanto, isso não diminui a validade da tradução de Pärt. Basear a validade de uma tradução na autoridade do código fonte seria como pedir ao autor de uma obra em português, que não conhece mandarim, para validar a tradução de sua obra para o mandarim. É prerrogativa do tradutor selecionar as camadas de sentido na obra fonte e vertê-las de acordo com seu melhor critério.