Música como “linguagem” de baixo nível de abstração
Ao examinar a relação entre “as emoções e a música” sob a perspectiva de músicos, Patrick Juslin cita o saxofonista americano de jazz John Coltrane (1926-1967) que afirmou que “uma linguagem musical transcende palavras. Quero falar para as almas deles” (JUSLIN, 2019, p. 115). Em outra ocasião, questionado pelo compositor de jazz Leonard Feather sobre como os jovens fãs devotos de Coltrane podiam apreciar sua música, que exigia elevado conhecimento técnico e muita atenção, Coltrane respondeu que “se houver algum sentimento de comunicação, não é necessário que a música seja entendida. Afinal, eu já gostava de música muito antes de poder identificar um acorde Gm7 [sol menor com sétima]… ouvintes acabam acompanhando bem os músicos” (KAHN, 2018, n.p.). Com isso, percebe-se que a “linguagem musical [que] transcende palavras” a qual Coltrane se referiu, também transcende a “linguagem” funcional da música, com seus requisitos de compreensão auditiva e conhecimento de metalinguagem musical.
Juslin explica que “tal como a linguagem verbal, a música consiste em elementos perceptivamente discretos, organizados em sequências estruturadas hierarquicamente” (JUSLIN, 2019, p. 350). Ao citar Coltrane, sobre a transcendência da música como “linguagem” sobre as palavras e sua significação semântica, Juslin parece perceber, reconhecer e ressaltar a possibilidade de comunicação no que seria uma linguagem de baixo nível de abstração. Dada a polissemia deste termo, “abstrato” é usado neste contexto com o sentido de separação ou distanciamento de determinado ponto referencial. Na declaração de Coltrane, o ponto referencial, do qual a música se aproxima e a fala se abstrai, é o conceito de “alma”. Este, por sua vez, também é um termo polissêmico. Parece pouco provável que Coltrane pensasse na acepção religiosa, sobre a qual não há consenso, de tal “termo”. Uma tradução possivelmente melhor para português, do termo “soul” (alma), empregado na citação, seria “coração”, ou “íntimo”. Desse modo, a música falaria diretamente ao coração, transcendendo a palavra e prescindindo de seu uso. A analogia a seguir, sobre linguagem de programação de computadores, procura tornar mais claras as relações de sentido e níveis de abstração entre o que Coltrane chama soul (a alma) e a linguagem.
Em Lógica de Programação de computadores, os termos “linguagem de alto nível” e “linguagem de baixo nível” referem ao grau de abstração, ou distanciamento, da linguagem usada em relação ao modo como computadores processam informação. A Figura 11 demonstra que quanto mais próxima do código binário, representado unicamente pelos algarismos “0” e “1”, que indicam simplesmente o estado (aberto ou fechado) de determinado circuito, mais baixo é o nível da linguagem empregada.
Por requererem menor quantidade de processamento, “linguagens de baixo nível” apresentam ganho de desempenho em relação às “linguagens de alto nível” que, por sua vez, precisam ser “traduzidas” para a “linguagem” de máquina. Em contrapartida, “linguagens de baixo nível” de abstração implicam em menor produtividade, dado seu distanciamento das linguagens humanas. Para ilustrar essas relações de “linguagem de alto” e de “baixo nível” com seus níveis de produção, considere a representação sonora da palavra “tradução”, que emprega uma sequência curta de sons agrupados em três sílabas. A despeito da altíssima complexidade inerente aos processos de fala e audição, as faculdades perceptivas humanas decodificam essa sequência sonora sem esforço. Para uma pessoa que tenha sido alfabetizada, a decodificação escrita do termo “tradução” é igualmente fácil. Em contraste com isso, tome a representação do termo “tradução” em linguagem binária como exemplo.
Tanto a representação sonora quanto a gráfica do código acima dificultam enormemente a sua utilização em escala de produção. Portanto, a produtividade de agentes humanos em ambientes com utilização de “linguagens de baixo nível” de abstração seria correspondentemente menor. Inversamente, “linguagens de alto nível”, por estarem mais próximas da linguagem humana, propiciam maior produtividade humana, ao passo que implicam menor desempenho por parte das máquinas que terão de processar os códigos nelas representados.
É possível traçar um paralelo entre a citação de Coltrane, por Patrick Juslin, quando aquele afirmou que “uma linguagem musical transcende palavras. Quero falar para as almas deles” (JUSLIN, 2019, p. 115) . Analogamente, aplicando o esquema na Figura 11 à expressão musical contraposta à linguagem, teríamos as mesmas categorias de “alto nível” e “baixo nível” de abstração, em relação ao que há no íntimo de quem se expressa. Na base da estrutura que se assemelha a uma pirâmide, onde aparece o termo hardware, teríamos o que Coltrane identificou como “alma” (soul), e que poderíamos traduzir por coração, vísceras, cerne, a mais íntima instância do ser humano. A expressão musical equivaleria à “linguagem de baixo nível” de abstração, ou de afastamento mínimo dessa instância interna do ser. Nesse âmbito, o emprego de palavras na comunicação do sentido seria ineficiente. Um possível argumento favorável a essa compreensão é o fato de que a música nos faz experimentar sensações impossíveis de serem traduzidas em palavras. Os termos técnicos musicais, a metalinguagem musical, podem descrever algumas instâncias da música que são comumente compreendidas e compartilhadas por uma comunidade qualquer. Quando se trata de descrever percepções, efeitos e sentimentos desencadeados pela música, porém, o emprego do signo sonoro com significação semântica, a “linguagem de alto nível” de abstração se mostra ineficaz.
Em suma, da perspectiva da teoria dos signos, de Peirce, a música pode ocupar a função de representamen do sentido, ou “objeto”. Seu baixo nível de abstração em relação ao “objeto”, ou o sentido que a música comunica, transcende a linguagem verbal. A tradução de música em outro tipo textual, portanto, também precisa transcender tal linguagem, no sentido de descartar a ortodoxia da tradução tradicional tanto no ato tradutório quanto no avaliativo.
Vimos que a música é pouco abstrata em relação ao aparato que a produz. Theo Van Leeuwen, porém, atribui à música o mais alto grau de abstração. Considere essa aparente contradição na próxima seção.