Charles Sanders Santiago Peirce (c. 48 anos de idade, 1878)
Shriver Hall Murals, Original Faculty of Philosophy
(Photo by JHU Sheridan Libraries/Gado/Getty Images)
A Teoria dos Signos
A partir dos anos 1860 até o final da primeira década do século 20, o filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) dedicou alguns de seus escritos ao estudo filosófico do signo. Ao longo desse período, Peirce refinou o modelo triádico dinâmico de análise semiótica que propôs, ajustando seu foco à filosofia e à lógica. Em abril de 1903, Peirce fez sua terceira preleção em Harvard, na qual detalhou a natureza das categorias que chamou de primeiridade, secundidade e terceiridade. “A primeira categoria é a ideia de algo que é o que é independentemente de qualquer outra coisa. Ou seja, é uma qualidade do sentir”. Em outras palavras, a primeiridade é o início, algo que é livre, espontâneo e original. Continuando sua argumentação, Peirce declara que a “segunda categoria é a ideia que é o que é sendo um segundo em relação a alguma outra coisa. Ou seja, é reação como elemento do fenômeno”. A secundidade é um efeito, uma reação de algo precedente sobre si mesma. Por fim, falando sobre a terceiridade, Peirce afirma que a “terceira categoria é a ideia do que é o que é sendo um terceiro, ou médium, entre um segundo e um terceiro. Ou seja, a representação como um elemento do fenômeno” (PEIRCE EDITION PROJECT, 1998, p. 160). A terceiridade implica transformação, desenvolvimento, realização, a partir da interação entre secundidade e primeiridade.
No capítulo oito do Livro II – Correspondências, que contém cartas para Lady Welby escritas em 190831F[1], Peirce trata da classificação dos signos seguindo o mesmo modelo triádico. No parágrafo 343 (Peirce: CP 8.343), Peirce declara que uma definição precisa, ou uma análise lógica, dos conceitos de ciência lhe parece um dos primeiros passos úteis em direção à ciência da semiótica. Em harmonia com esse preceito, Peirce acrescenta:
Eu defino Signo como qualquer coisa que por um lado é determinada por um Objeto e, por outro lado, determina uma ideia na mente de uma pessoa, de modo tal que esta última determinação, que eu chamo de Interpretante do signo, seja indiretamente determinada por aquele Objeto. Um signo, portanto, está em uma relação triádica com seu Objeto e com seu Interpretante. É necessário, porém, distinguir o Objeto Imediato, ou o Objeto como representado pelo signo, do Objeto Dinâmico, ou Objeto realmente eficiente, mas não imediatamente presente. De modo similar, é necessário distinguir o Interpretante Imediato, ou seja, o Interpretante representado ou significado no Signo, do Interpretante Dinâmico, ou o efeito de fato produzido na mente pelo Signo; e ambos devem ser distinguidos do Interpretante Normal, ou o efeito que seria produzido na mente pelo Signo depois de o pensamento se desenvolver suficientemente. Sobre essas considerações, eu baseio a identificação de dez aspectos em que Signos podem ser divididos. Não afirmo que essas divisões sejam suficientes. Visto que cada uma delas é uma tricotomia, para decidir que classes de signos resultam delas eu teria 310, ou 59.049 difíceis questões para considerar cuidadosamente; assim, não assumo a tarefa de levar adiante minha divisão sistemática de signos, mas a deixo ao cargo de futuros exploradores.
Charles Peirce (HARTSHORNE e WEISS, 1931, p. 2748)
Em documento anterior, o manuscrito 404 (de 1894), que mais tarde se tornou o capítulo dois de How to Reason: A Critick of Arguments (Como Pensar: Uma crítica de argumentos), Peirce elaborou didaticamente uma explanação do termo “signo” no contexto dos estudos semióticos (PEIRCE EDITION PROJECT, 1998, p. 4). Para Peirce, a definição de signo é necessária porque todo raciocínio é uma interpretação de signos de alguma espécie. Encontrar a resposta para a definição de signo requer reconhecer três estados mentais: sentimento, reação e pensamento.
O estado mental chamado “sentimento” é aquele em que algo está presente na mente sem ser evocado por pensamento consciente. Peirce argumenta que esse estado seria semelhante às condições do indivíduo durante o sonho, em que não se tem controle racional dos pensamentos. Uma vez acordada, a pessoa nunca estaria pura e simplesmente nesse estado mental, mas todo indivíduo sempre tem algo na mente e esse algo, quando não exerce a razão, não deriva de ato voluntário e enquanto não se traduz em ação, seria o que Peirce chama estado mental do “sentimento”. “Reação” seria o segundo estado mental cuja compreensão é necessária para a definição de signo. Nesse estado, a interação de duas coisas provoca no indivíduo uma reação involuntária. Peirce ilustra isso com a descrição de um indivíduo que é abruptamente tirado de um estado onírico pelo barulho ensurdecedor de uma sirene e que, protegendo os ouvidos com as mãos, foge institivamente. A percepção da sirene induz à ação não voluntária e provoca nele uma reação baseada em sua percepção da realidade à sua volta. Por fim, o estado mental do “pensamento” envolve observação racional e aprendizado. Na ilustração usada por Peirce, o indivíduo que teve seu estado onírico interrompido por uma sirene e que, no primeiro momento, teve uma reação instintiva, nesse estágio, seria capaz de apreender que suas ações podem interromper o barulho e de usar esse conhecimento concordemente.
Em resumo, os estados mentais do “sentimento”, da “reação” e do “pensamento” diferem em escopo. O primeiro está confinado à coisa pela coisa, no domínio das ideias não racionais, algo que simplesmente é na mente, sem evocar ou convocar a razão ou compelir à ação. O segundo é desencadeado pela interação de duas coisas, ou dois estados de sentimento, e provoca uma reação involuntária no indivíduo que o experimenta. O terceiro, o estado do “pensamento”, resulta do encadeamento de eventos mentais num crescendo do não racional para a assimilação inteligente e compreensiva das coisas.
Peirce argumenta que há três maneiras de se manifestar interesse em algo. Essas maneiras, de certo modo, ecoam os estados mentais acima. Primeiramente, pode haver interesse na coisa pela própria coisa. A seguir, viria o interesse em algo por causa de suas reações e relações com outras coisas. Por fim, o interesse em algo como meio de levar à mente uma ideia sobre alguma coisa. Quando isso ocorre, segundo Peirce, constitui-se um “signo, ou representação” (PEIRCE EDITION PROJECT, 1998, p. 5). Para ilustrar o argumento de Peirce, pense no arco-íris. A primeira maneira do interesse seria a simples contemplação do belo e a experimentação não racionalmente dirigida dos sentimentos evocados pela imagem. Um segundo estágio de interesse compreenderia a contemplação do arco-íris em relação ao cenário geral e às condições atmosféricas propícias à manifestação do fenômeno. A associação do arco-íris ao relato bíblico sobre o pacto divino de jamais arruinar a terra por meio de um dilúvio global (Gênesis 9:8-17) seria equivalente ao terceiro modo de manifestar interesse em algo, o de levar à mente uma ideia como forma de representação. Nesse caso, o arco-íris seria o signo (símbolo) do pacto.
Continuando sua argumentação sobre a definição de signo, Peirce afirma que há três tipos de signos: (1) as semelhanças, ou os ícones, (2) as indicações, ou os índices e (3) os símbolos, ou signos gerais. “Os ícones carregam ideias das coisas que representam pela simples imitação” (ibidem p. 5). Os índices mostram algo sobre as coisas. Os símbolos, por sua vez, são associados com seus significados pelo uso. Esse seria, segundo Peirce, o caso da “maioria das palavras, sentenças, discursos, livros e bibliotecas” (ibidem p. 5). Nas origens da palavra símbolo, do grego σύμβολον (lançar junto), está a ideia de contrato, ou convenção. O símbolo não contém informação, mas a representa. Tal representação carece de indicações ligadas à experiência das partes envolvidas na comunicação. Por fim, Peirce afirma que todo raciocínio implica uso de uma mistura indispensável de semelhanças, índices e símbolos (ibidem p. 10). Desse modo, o modelo triádico do signo estaria na base de todo pensamento. A Figura 8 esquematiza as relações entre os elementos da teoria dos signos.
O modelo recursivo do signo foi usado por Peirce, entre outras coisas, na categorização universal das ciências. José Martinez explica que “Peirce pensou a classificação das ciências segundo uma concepção dinâmica, onde ideias são trocadas entre os diferentes ramos em níveis diversos de abstração e aplicação” (MARTINEZ, 1999). As ciências estariam classificadas em (1) ciências heurísticas, cujo propósito é a descoberta pela descoberta; (2) ciências de revisão, cuja operação se dá na crítica e assimilação das descobertas das ciências heurísticas; e (3) ciências práticas, que se ocupam das necessidades e dos desejos humanos.
Ao tratar da relação entre a música, a semiótica e a teoria peirceana do signo, Martinez empreendeu localizar a música na classificação das ciências, de Charles Peirce. O autor salienta que Pierre Boulez define a música como “ao mesmo tempo uma arte, uma ciência e um ofício” (BOULEZ, apud MARTINEZ, 1999, n.p.). Valendo-se dessa definição, Martinez aplica à música o modelo triádico de Peirce.
Em seu aspecto primeiridade, a música se justifica como uma arte, pois diz respeito principalmente ao propósito estético, entre eles, a admirabilidade em si mesma. A secundidade da música remete ao seu aspecto ofício, isto é, à sua práxis, a música só de fato existe quando é executada32F[2]. Enquanto terceiridade, a música é uma ciência tanto quanto envolve aprendizado, conhecimento musical, desenvolvimento contínuo e a existência de uma comunidade de músicos, ouvintes e musicólogos (MARTINEZ, 1999, n.p.).
Portanto, a música estaria representada nos três níveis classificatórios das ciências, segundo o modelo de Peirce. Entretanto, Martinez observa que a teoria geral dos signos foi concebida com alto grau de generalidade para dar conta de um largo espectro de aplicabilidade. O autor aponta para a necessidade “da construção de uma teoria intermediária, ou seja, uma teoria semiótica da música” (ibidem).
A associação entre música e significação é problemática, e há quem rejeite por completo tal associação, por causa da dificuldade na determinação das relações entre signo e significado. Igor Stravinsky entendia que a música é impotente como forma de expressão e que, se ela parecesse expressar algo, isso seria apenas uma ilusão e não a realidade (VAN LEEUWEN, 1999, p. 165). Por outro lado, a evidência parece favorecer o argumento de que a música é um recurso semiótico passivo de tradução, seja na posição de código fonte ou de código alvo. Entendo que as traduções em que a música figura como código fonte ou meta transferem a discussão para o nível do sentido. Tal aparente contradição entre subjetividade e sentido de que a música pode ser carregada suscita questões importantes que ensejam o exame neste trabalho.
[1] Data obtida de notas editoriais em rodapé de página de texto não-publicado, conforme Peter Mahr, Universität Wien, disponível em https://homepage.univie.ac.at/peter.mahr/2011.7.html, acesso em 26/01/2021.
[2] Discordo do argumento de que a música só existe “de fato” quando é executada, ainda que o contexto dessa afirmação enquadre a música como “ofício”. Ela pode existir na mente de quem a lê em uma partitura, mesmo sem o auxílio qualquer instrumento musical, e na memória cultural coletiva. Quando aprendo a tocar uma peça ao violão, ela passa a ter uma existência bastante real, como entidade formal e conceitual, como texto, em minha mente. Afirmar que a música só existe de fato quando executada equivaleria a dizer o poema Morte e Vida Severina (João Cabral de Melo Neto) só existe durante sua leitura, o que nega o senso comum sobre a existência do poema. A vibração sonora, esta sim, só existe “de fato” durante a execução da música. Mas o fazer musical não se resume a vibração sonora.