Devem existir, têm de existir, relações exatas entre essas diferentes expressões de algo idêntico, e tais que sejam reversíveis ao ponto de, se as entendermos, podermos traduzir uma pela outra.
— Arthur Honegger, 1931
Agence de presse Meurisse, Public domain, via Wikimedia Commons
A tradução permeia múltiplas facetas do cotidiano da vida em sociedade. Ela está no cinema, na literatura, nas bulas de remédios, em manuais técnicos e em uma infinidade de outras fontes de informação. Talvez não seja exagero afirmar que na base do tecido da história está o fio da tradução. Muitas vezes, não explicitamente mencionado, o papel da tradução nos contatos entre os povos não apenas dispensa apresentações, como também coloca a tradução entre as atividades mais antigas da história. As pessoas lidam com conteúdo traduzido o tempo todo e isso sem se aperceber da existência do tradutor 0F[1] ou da importância da tradução para o modo de vida moderno.
[1] Neste trabalho, o emprego de termos marcados por desinências de gênero, a menos que indicado pelo contexto ou de outra forma explicitado, pressupõe a abstração de gênero. (Sobre “generalização” vs. “abstração”, queira consultar o Dicionário de Sinônimos da Língua Portuguesa / Rocha Pombo (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2011, p. 412)). Assim, como exemplo, o termo “tradutor”, conforme usado neste trabalho, não significa “pessoa do sexo masculino que exerce a tradução”, mas “ente que exerce a tradução”.
O papel conciliador e integrador da atividade de tradução não é propriedade dos tempos modernos. O senso comum dá conta de suas contribuições para o desenvolvimento histórico das sociedades e de suas culturas, nas trocas culturais e nas relações entre povos. Assim, é curioso que, a despeito dessas contribuições, os Estudos da Tradução, e seu estabelecimento como disciplina autônoma em relação a outras disciplinas, sejam relativamente recentes no mundo ocidental. No capítulo introdutório de The Translation Studies Reader, Lawrence Venuti declara que as últimas quatro décadas do século vinte constituem o “período em que os estudos da tradução emergiram como nova área acadêmica1F[1]” (VENUTI, 2012, p. 1). A declaração de Venuti não desconsidera a influência de nomes importantes para a “tradução”. Ali Ghanooni, ao falar sobre vultos proeminentes da tradução ao longo da história, reúne nomes como Cicero (primeiro século AC) e Quintiliano (primeiro século AD), que pensavam a tradução a partir de uma abordagem derivada da retórica, São Jerônimo (quarto século AD), John Dryden (século 17), Friedrich Schleiermacher (século 19) e Walter Benjamin, com o ensaio A Tarefa do Tradutor, em 1923, para citar alguns cuja contribuição foi significativa (GHANOONI, 2012, p. 77). No entanto, foram eventos na segunda metade do século 20, em especial a partir da publicação do artigo seminal “The name and nature of translation studies” 2F[1] (HOLMES, 1988), que marcaram a admissão dos estudos da tradução como disciplina autônoma. Venuti argumenta que coube a “James Holmes desenhar um mapa para a área dos estudos da tradução, demarcando os limites entre áreas de pesquisa teórico-descritiva “pura” e áreas aplicadas, como ensino e crítica” (VENUTI, 2012, p. 138). A relativa “juventude” dos Estudos da Tradução parece particularmente adequada para descrever os estudos sobre a tradução intersemiótica e a tradução multimodal 3F[2].
[1] O nome e a natureza dos estudos da tradução é a versão expandida de um trabalho apresentado por James Holmes durante a Seção de Tradução do Terceiro Congresso Internacional de Linguística Aplicada, realizado em Copenhagen, de 21 a 26 de agosto de 1972.
[2] “Tradução intersemiótica ou transmutação é uma interpretação de signos verbais por meio de signos de sistemas não verbais de signos” (JAKOBSON, 1959, p. 233). “Tradução multimodal” seria uma ampliação do conceito proposto por Jakobson, posto que o signo verbal não constitui elemento obrigatório para haver tradução multimodal.
[1] Salvo indicação contrária, toda tradução do inglês para o português, de fontes citadas neste trabalho, é de minha autoria.
É possível que o termo “tradução” seja mais frequentemente compreendido como o fazer transitar significados de uma linguagem verbal para outra. Isso se deduz a partir do senso comum sobre tradução. O conceito indiscutivelmente prevalecente que se tem de alguém que trabalha com tradução é que tal pessoa faz transitar o sentido de palavras de um idioma para outro. “Tradutora” seria, portanto, a pessoa encarregada de operar esse trânsito de significados. Entretanto, Monica Boria e Marcus Tomalin ressaltam que
É importante notar que as palavras usadas para subclassificar “tradução” sempre revelam algo a respeito das metáforas subjacentes e dos modelos conceituais que orientam nosso pensamento sobre a essência da atividade [da tradução]. (…) Todos os termos que usam a raiz latina ‘trans’ sugerem algum tipo de movimento, mas é preciso ter cuidado para que isso não restrinja nosso modo de pensar sobre os processos subjacentes envolvidos. (…) Em finlandês, por exemplo, o verbo kääntää significa “traduzir”, mas o significado de sua raiz é “virar”. Assim, ao invés de transportar através de uma barreira, ou de um lugar a outro, traduções em finlandês viram algo para revelar um outro lado (BORIA, CARRERES, et al., 2020, p. 15, 16).
Portanto, em lugar de “trânsito de significados”, o termo finlandês para “tradução” estaria mais associado à ideia de movimento em torno de um eixo, do que à de trânsito propriamente dito, que implica a ideia de movimento que leva ao deslocamento.
Entendo que essa sugestão de cautela e senso crítico pode ser especialmente útil ao exame de conceitos cristalizados, na medida em que propicia a detecção de possibilidades que de outro modo permaneceriam esmaecidas pelo pré-juízo. Em outras palavras, aspectos importantes da tradução passariam despercebidos se permitíssemos que suas vertentes predominantes no âmbito dos Estudos da Tradução soassem como tudo o que se precisa pesquisar e que se pode saber sobre o assunto. As vertentes predominantes a que refiro são, principalmente, a tradução literária e a tradução especializada, que operam com códigos verbais entre línguas diferentes ou com diferentes expressões de um sentido na mesma língua. Além dessas vertentes, a tradução intersemiótica, que não depende do código verbal para ocorrer, tem recebido certa atenção dos Estudos da Tradução. Esses veios de pesquisa destacados nos Estudos da Tradução foram contemplados pela classificação de Roman Jakobson, como veremos adiante de modo mais detalhado, quanto aos tipos de tradução, a saber, interlingual4F[1], intralingual e intersemiótica (JAKOBSON, 1959, p. 233). No entanto, a distribuição de uso do termo “tradução” está longe de ser equitativa, como veremos a seguir.
Uma breve pesquisa pelo número ocorrências da palavra “tradutor” no Corpus do Português5F[2] (DAVIES, s.d.) parece confirmar o que intuitivamente se percebe a respeito do uso dessa palavra, a saber, que tal uso ocorre primariamente associado à tradução de textos escritos. É revelador e significativo que a tabela de resultados de pesquisa por ocorrência contextualizada da palavra “tradutor” retorne 20.370 ocorrências, dentre as quais apenas três correspondem a “tradução intersemiótica”. Compare-se esse número ínfimo às 85 ocorrências de “tradução literária” para obter uma confirmação de que a distribuição de uso do termo “tradução” associado às suas vertentes mais importantes não é igualitária. Ora, a “tradução intersemiótica” é uma área reconhecida e, até certo ponto, estabelecida nos Estudos da Tradução. Para o senso comum, no entanto, o tradutor intersemiótico é uma figura não vigente, sem essência. Naturalmente, a tradução intersemiótica não é um efeito sem causa. Se há tradução, tem de haver agente da tradução. Esta seria mais uma camada de invisibilidade do tradutor6F[3] possivelmente produtiva como objeto de novos estudos, além de camadas representadas pela não atribuição de crédito pela tradução, particularmente na tradução especializada, pelo cerceamento de espaços em paratextos e pela falta geral de representatividade da categoria profissional, por sua vez tolhida pela inexistência de códigos reguladores da profissão na maioria dos países ocidentais.
Se o exercício da tradução é primariamente associado pelo senso comum ao fazer transitar significados de um código verbal para outro, o que dizer da tradução de recursos semióticos para fazer transitar significados não verbais? Essa seria uma das lacunas importantes no campo dos Estudos da Tradução. É relativamente fácil encontrar pesquisas e artigos sobre as mais diversas questões no corolário da tradução especializada7F[4], compreendendo “tradução geral, tradução científica, tradução técnica, tradução jurídica, tradução médica e outras” (ASENSIO, 2016, p. 122) como denominações correntemente aceitas pelos Estudos da Tradução. Questões sobre terminologia, localização, legendagem, tradução para jogos, tradução por máquina, memórias de tradução, tradução colaborativa e tantas outras nesse âmbito têm sido cuidadosamente estudadas, especialmente desde a revolução tecnológica nos meios de comunicação, que teve início nas duas últimas décadas do século vinte e que continua num crescendo. A produção científica em torno da tradução literária é igualmente abundante. No entanto, no que diz respeito à tradução entre recursos semióticos não verbais a produção científica é significativamente menor, em comparação com as áreas da tradução literária e tradução especializada. Entendo que essa relativa escassez de produção científica sobre tradução de recursos semióticos não verbais não se justifica pela não ocorrência desse fenômeno tradutório. Com um pouco de observação, ele pode ser percebido em toda a parte, de maneira constante e contínua. Considere os exemplos a seguir.
As escolhas da palheta de cores e de fontes tipográficas de um desenvolvedor de sítios para web podem transmitir confiabilidade, por exemplo, ou podem sugerir um humor leve. Essas escolhas estéticas visam a comunicação codificada de sentidos que podem ser expressos (traduzidos) em linguagem verbal. Ao contratar os serviços de desenvolvimento de um sítio para web, o contratante precisa comunicar ao contratado os atributos de sua demanda e faz isso dispondo de recursos da linguagem verbal, tal como na declaração “o website precisa transmitir confiabilidade, seriedade e segurança”. O papel do desenvolvedor para web é verter aquela descrição linguisticamente produzida por meio de suas escolhas estéticas. Um sítio que contivesse em sua página de chegada o texto “boas-vindas ao nosso site sério, confiável e seguro”, escrito em fonte “Comic Sans” sobre fundo multicolorido, adornado com emoticons e GIFs (graphic interchange format, ou “formato gráfico intercambiável”) animados em cores brilhantes, seria provavelmente interpretado como piada. Dificilmente alguém sentiria segurança para realizar transações bancárias, por exemplo, em um sítio assim.
O fato de que as escolhas estéticas comunicam significados de modo eficaz também pode ser notado ao se assistir a uma propaganda de creme de cabelo na TV. Quantos se dão conta do volume de conteúdo traduzido veiculado pelo anúncio? Primeiramente, o fabricante tem uma proposta linguisticamente construída que é apresentada a uma agência de propaganda. Na sequência, a agência assume a função de tradutora na medida em que cria cenários, faz uso de cores, de texturas e de sons (não verbais) que veiculem e reforcem a proposta do fabricante, com uso mínimo de recursos verbais. Isso implica o uso massivo e eficaz de recursos semióticos não verbais. Os exemplos acima tornam evidente a ocorrência de um processo tradutório na instância intersemiótica que, em muitos casos, tem precedência.
Principalmente a partir do desenvolvimento dos meios de comunicação em massa, como o rádio, o cinema e a televisão, durante o século XX, a música passa ocupar, cada vez mais, uma posição de grande importância na comunicação não verbal de sentidos. Em defesa de tal argumento, notem-se os usos da música como coadjuvante de sentido na propaganda, no cinema e no teatro, que intensificam a cena e constroem memória8F[5]. A música liga outro nível de cognição no sentido de envolver psicologicamente a plateia, tirando-a da posição de testemunha da cena para a posição de protagonista. Falando sobre o efeito da música na cena do assassinato no chuveiro, de Psicose (Psycho, 1960), Steven Smith, biógrafo de Alfred Hitchcock, declarou:
É interessante assistir essa sequência sem música porque, embora seja uma sequência muito perturbadora, você ainda a está assistindo como quem a observa de fora. Está assistindo uma coisa terrível acontecer, mas seu ponto de vista é o de alguém que está fora da cena. Com a música de Herrmann, você é Janet Leigh. Você sente o pavor absoluto, o pânico e a perda de controle que ela sente enquanto tenta se desvencilhar de seu agressor (SIEGEL, 2000).
Janet Leigh é a atriz que viveu o papel da personagem Marion Crane. A música tem o indiscutível poder de potencializar as sensações através do que comunica e, certamente por isso, ocupa esse papel todo importante nos meios de comunicação. O que mais pode revelar o exame da cena do chuveiro, em “Psicose”? Vejamos.
A antológica cena do chuveiro seria um exemplo clássico do poder da música na comunicação de sentido, passando, neste caso, de coadjuvante a protagonista. Na cena que “rouba a cena”, com duração de pouco mais de 90 segundos, a música transforma o que poderia ser um momento de relaxamento em um quadro marcado por medo aterrorizante através do emprego sincrônico de recursos expressivos baseados no andamento e nos intervalos harmônicos e de “uma combinação simultânea de técnicas expressivas: vigorosos, violentos até, golpes descentes em sforzato sobre duas notas dissonantes, E e E6♭, pelo primeiro e segundo violinos, tudo isso tocado com ferocidade (feroce) em mínimas repedidas rapidamente, em compasso 3/2” (RAWLE e DONNELY, 2017, p. 77).
Ao surgimento da sombra do assassino Norman Bates (interpretado por Anthony Perkins) por trás da cortina do chuveiro, a música começa com o primeiro violino, que prenuncia o perigo com a nota E6♭ repetida intermitentemente, com agudíssimos 1245 Hz, em cada tempo dos oito primeiros compassos ternários. Ser ternário o compasso9F[6], com a repetição da nota E6♭ é significativo se considerarmos isso à luz da figura de retórica epizêuxis, que é a repetição contígua do mesmo termo, dentro da mesma frase, para conferir ênfase ou expressar veemência. A repetição ominosa da mesma nota significa iminência e urgência, na cena do assassinato de Marion.
No segundo compasso, enquanto o primeiro violino executa a símile da estrutura no primeiro compasso, o segundo violino acrescenta força ao “grito de alerta” por soar a nota E6♭ junto com a E5, o que cria um intervalo de 8ª menor. O efeito dessa combinação dissonante é a intensificação das tensões que se consolidam nas vozes dos violinos e atribuem à peça e à primeira parte da cena um caráter agourento. Nos compassos 3 e 4, as violas se juntam ao grito dos violinos com a repetição da mesma estrutura em símile, que se mantém até o compasso 1610F[7]. A primeira viola, no compasso 3, integra ao acorde a nota D5♯. Com efeito, amplifica-se a força do aviso. O acréscimo da segunda viola, que executa o mesmo acorde, é a nota E4, localizada a duas oitavas (menos meio tom) abaixo da primeira nota. Cria-se um padrão no acréscimo de intervalos desarmônicos, visto na Figura 1, que se repete à medida em que os violoncelos e os contrabaixos são introduzidos até o oitavo compasso.
Como se vê na redução da partitura e análise11F[8] de Narrative for String Orchestra – The Murder (Figura 2), por Brad Frey (2017), o conteúdo dos oito primeiros compassos é repetido nos compassos nove a dezesseis com apenas uma diferença muito importante. O primeiro violino, que continua repetindo intermitentemente a nota E6♭, adiciona o efeito glissando à sua execução. Esse efeito tem dupla função na cena do chuveiro. Do ponto de vista aural12F[9], o glissando sugere a iminência do trágico e simula o grito de pavor de Marion.
No que diz respeito à interação aural-visual na cena do chuveiro, a repetição da nota E6♭ em glissando encontra par nos repetidos golpes de punhal que o assassino desfere contra Marion. Considerando a relação entre cena e música, Alison Kelley argumenta que
O efeito, produzido pelo toque sucessivo com essa força dinâmica nos tempos fortes, é uma ênfase métrica no tempo forte que imita a violência do ataque de Norman e a incongruência da ira dele. Fechar seus olhos para os golpes do assassinato coreografado por Hitchcock não impedirá que testemunhe o assassinato pelas “facadas” nas cordas (KELLEY, 2011, p. 53).
Admitindo-se que a música, tal como a iluminação, por exemplo, seja uma parte da cena, as observações de Kelley tratam da relação entre o todo (a cena) e uma parte desse todo (a música). Uma vez contextualizada pelas imagens exibidas até o ponto em que surge uma silhueta por trás da cortina transparente, a música seria suficiente, afirma Kelley, para comunicar inequivocamente o desfecho do ataque de Norman contra Marion, sem depender dos demais elementos imagéticos. A Figura 3 demonstra a estrutura rítmica e a articulação das seções da peça em que, primeiro, Marion é atacada, seguida do desfecho de morte da protagonista e fuga do assassino.
Embora esta análise pudesse prosseguir, o ponto até onde avançamos parece suficiente para argumentar que a música possui importante papel de portadora de sentido. Em entrevista concedida a Stephen Watts13F[10], sobre a relação entre música e filme, Hitchcock afirmou que a música “torna possível a expressão do não dito” (WATTS, 1995, p. 243-244). Entendo que isso se aplica a uma ampla gama de situações cenográficas, embora o contexto específico em que Hitchcock fez essa afirmação diga respeito ao papel da música em cenas de diálogos. Na cena do assassinato em “Psicose”, a música comunica sentidos do não dito e do que não se pode expressar em palavras.
Leitores não familiarizados com os termos musicais acima talvez se beneficiem da seguinte ilustração. Uma mulher caminha desavisadamente por uma rua em que há um bandido à espreita. Moradores de um prédio próximo podem ver a mulher que caminha e o bandido prestes a atacá-la. Alguém, na cobertura daquele prédio, pressente o perigo e começa a gritar um sinal de aviso. Outra pessoa sai à sacada do andar debaixo e se junta ao vizinho no grito de alerta. Na sequência, outros moradores dos andares abaixo seguem o mesmo padrão: saem à sacada e repetem o mesmo alerta. Não obstante, a moça desatenta não reage em tempo e é gravemente ferida e morta pelo bandido. Enquanto o bandido foge, há um murmúrio contido em tom grave das pessoas nos andares mais baixos, que contemplam a cena trágica. O que a música de Herrmann contribui para a cena do chuveiro em “Psicose” é algo parecido com essa imagem. Os moradores aterrorizados correspondem às vozes dos instrumentos de corda. Suas posições na escala vertical dos apartamentos no prédio correspondem às frequências das notas executadas pelos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. Elas variam em timbre, em sua frequência, mas, além disso, se juntam na construção unívoca do sentido.
Ao falar sobre a música obstinadamente composta por Bernard Herrmann, que recebera instruções específicas para não haver música na cena do chuveiro14F[11], Jack Sullivan observa que ela “está inseparavelmente ligada ao filme na imaginação popular; de fato, sem ela, “Psicose” provavelmente não existiria” (SULLIVAN, 2008, p. 243, 250) porque o próprio Hitchcock estava tão insatisfeito com o filme que considerava a possibilidade de cortar partes dele e aproveitar o que sobrasse em um programa para a TV. Rememorando a ocasião em que assistiu junto com Hitchcock a cena do chuveiro, Joseph Stefano, que foi o roteirista de “Psicose”, disse que “Quando ouvi a música, quase caí da cadeira. Hitchcock disse que a música elevou o impacto de “Psicose” em 33%. Elevou para mim em outros 30%. Hitchcock esperava que eu ficasse impressionado com a música e eu fiquei mesmo” (SULLIVAN, 2008, p. 252; RAWLE e DONNELY, 2017, p. 18). O impacto da música sobre Joseph Stefano, e sobre uma inteira geração de público de cinema no mundo ocidental, pelo menos, é evidência do poder que a música tem de portar sentido que, no caso dos violinos estridentes de “Psicose”, usa a música de Herrmann como veículo.
No caso de Psicose, a música eleva o impacto do sentido através do apelo psicológico. Pode-se arguir que a música em Psicose traduz recurso semiótico visual para recurso semiótico aural, posto que ela expressa a mesma mensagem por meio diferente. Nem Hitchcock nem Herrmann, ao que parece, pensaram na relação entre música e cinema como processo tradutório, apesar da evidência de interação e transferência de sentindo entre os meios visual e aural. Outros autores, como veremos a seguir na explanação do problema de que trata este trabalho, foram mais específicos em tratar a relação entre música e outras artes como processos de tradução.
[1] Ao comentar o ensaio de Jakobson, depois de descrever o conceito de tradução “intralingual” Jacques Derrida acrescenta: “Existiria em seguida o que Jakobson chama lindamente de tradução “propriamente dita”, a tradução interlingual que interpreta signos linguísticos por meio de uma outra língua” (DERRIDA, 2002, p. 23). Ou seja, tradução autêntica teria de ser interlingual, conceito que ecoa e prevalece ainda hoje.
[2] O Corpus do Português: NOW (News on the Web) contém cerca de 1,4 bilhão de palavras coletadas de jornais e revistas com publicação online, abrangendo o período de 2012-2019.
[3] Lawrence Venuti (1995, p. 1-42) examina e discorre sobre a “invisibilidade do tradutor”, termo que o autor usa para descrever o fenômeno que resulta na exclusão (ou limitação, no melhor dos casos) de referências à pessoa responsável pela tradução. Em geral, o agente da tradução só recebe atenção quando há problemas de qualidade no texto traduzido. No caso da tradução intersemiótica, a camada adicional de invisibilidade do tradutor estaria na supressão do agente que opera a tradução que, em geral, não é identificado como tradutor.
[5] Esse “construir memória”, segundo o entendo, é mais do que apenas ser capaz de lembrar de acontecimentos passados ou do que se aprendeu deles. A memória é o que permite ao ser humano a conexão com o passado no presente, é catalizadora de tempo e espaço. No sentido de tornar a experiência em uma parte de quem a viveu através de um processo contínuo de formação de identidade, a música constrói memória.
[6] O compasso ternário, como o nome sugere, é uma unidade estrutural de organização musical composta por três tempos, sendo o primeiro um tempo de acento métrico forte, seguido de dois tempos de acento métrico fraco, ou simplesmente “tempo forte” e “tempo fraco”. O tempo forte é o que marca o início do compasso e funciona de modo análogo à sílaba tônica, na expressão verbal. A valsa, por exemplo, é um ritmo usualmente composto sobre compasso ternário.
[7] Vide redução da partitura, por Alison Kelly, em Anexo IV (KELLEY, 2011, p. 56-58).
[8] A Figura 2, com a redução e análise da peça The Murder, indica o intervalo de 7ª maior ente a nota E6♭ e E5. Considerando que de E5 para E6 tem-se um intervalo de 8ª (E = 1ª, F = 2ª, G = 3ª, A = 4ª, B = 5ª, C = 6ª, D = 7ª, E = 8ª), seria mais preciso chamar esse intervalo de 8ª menor/diminuta.
[9] Opto pelo termo “recurso semiótico aural” para referir aos signos perceptíveis pelo sentido da audição. Assim como o termo “ótico” parece mais associado ao que se emprega para perceber imagens (óculos, lentes, olhos) do que à informação passiva de percepção, o termo “auditivo” parece mais associado ao que se usa para perceber a informação sonora usa (os órgãos da audição) do que à mensagem propriamente dita.
[10] Entrevista On Music in Films, publicada originalmente na revista Cinema Quarterly (Edimburgo) 2, n.2 (Inverno 1933-1934): páginas 80-83.
[11] William Rosar conta que Hitchcock havia dado instruções específicas a Bernard Herrmann para não haver música na cena do chuveiro. Depois de assistir a cena sem e com a música de Herrmann, Hitchcock mudou de ideia. Herrmann teria lembrado a Hitchcock que a instrução inicial era não haver música, ao que Hitchcock admitira: “sugestão imprópria, meu filho, imprópria” (ROSAR, 2017, p. 192).