Música e Tradução

Os componentes básicos da música são ritmo, melodia e harmonia. Uma lista mais compreensiva desses componentes incluiria o som (harmônicos, timbre, frequência, amplitude e duração), a textura, a estrutura, a expressão (dinâmica, tempo, articulação) e, não menos importante, o silêncio. Tal como na fala, cujos componentes mínimos (sílabas) são desprovidos de significação semântica, os elementos mínimos da música (as notas musicais descontextualizadas) são abstratos, ou afastados, desse tipo de significação24F[1]. O adjetivo “abstrato” é usado aqui em seu sentido mais primitivo (fins do século XIV), do latim abstractus, particípio passado de ab-trahere -> abstrahere = “tirar de”, que transmite a ideia de algo afastado, removido. Os componentes da fala, abstratos de seu contexto, gradualmente e de acordo com a classe gramatical a que pertencem, perdem carga semântica. Imaginemos alguém que faça uma consulta em um mecanismo de busca na Internet e que insere apenas a palavra “mas”. O sistema de buscas do Google, por exemplo, retornaria 2,12 bilhões de ocorrências dessa palavra, em português do Brasil25F[2]. Entretanto, o termo “mas” carece de contexto para ser resolvido. Descontextualizado, ele quase não tem significado e é totalmente desprovido de sentido. De modo semelhante, entendo que os elementos mínimos da música, quando isolados de seu contexto, são abstratos, desprovidos de carga semântica e de sentido.

A diferença entre a música e a fala, no que diz respeito à significação semântica, se manifesta em ambiente de contexto. A palavra “mas” contextualizada, tal como em “eu gostaria que chovesse, mas isso não vai acontecer”, tem significado e sentido precisos. Isso, porém, não ocorre na música. Um acorde Dm (ré menor) em uma progressão musical, por exemplo, não adquire significação semântica em virtude de contexto. A estrutura harmônica do acorde Dm, composta pelo primeiro grau (D = ré), pelo terceiro grau menor (F = fá) e pelo quinto grau, ou quinta justa (A = lá) da escala, parece sugerir um humor melancólico e reflexivo. A intensidade da resposta a tal sugestão depende do contexto em que esse acorde é inserido. Ao que parece, a maioria das pessoas é psicologicamente sensível ao impulso melancólico de um acorde em tonalidade menor. Alguém que ouça os concertos de Vivaldi, os seis concertos para flauta, compostos em 1728, por exemplo, possivelmente experimentará os extremos de extroversão e de introspecção, de esfuziante vibração e de tristeza profunda, ao passo que a música explora construções alternadas em tonalidades maior e menor. As razões de tal sensibilidade ao som musical parecem inconclusivas. Será que há algo intrínseco à mente humana que nos predispõe às mudanças de humor desencadeadas por vibrações sonoras? Ou será que é algo social e culturalmente construído, fixado e assimilado?

O organista alemão, do período barroco, e teórico da música Andreas Werckmeister (1645-1706), notável promotor e defensor da escala bem temperada, formulou uma explicação racional para as diferentes reações que a mesma música pode desencadear em diferentes ouvintes. No capítulo sete de Musicalische Paradoxal-Discourse: a well tempered universe (Discurso Paradoxal Musical: um universo bem-temperado), Werckmeister postula que “uma pessoa triste e melancólica se sentirá mais atraída por uma música triste do que por peças alegres e vibrantes; em contrapartida, uma pessoa alegre não dará grande importância às harmonias tristes” (WERCKMEISTER, 2017, p. 82-83). Em paratextos da obra que traduziu, de Werckmeister, Dietrich Bartel explica que o som musical era entendido como o estímulo capaz de despertar afetos do modo mais direto e mais imediato possível, mas que a resposta a esse estímulo seria mais ou menos intensa a depender do humor predominante do ouvinte, que o tornaria mais receptivo ao estímulo de um afeto alinhado à sua própria natureza (p. 26).

Werckmeister baseava muito de seus argumentos em conceitos que, pelos padrões atuais, seriam considerados inexatos, carregados de generosa dose de misticismo e fortemente influenciados por crenças religiosas luteranas. Ainda assim, a adoção da escala temperada pela música ocidental e a influência do trabalho de Werckmeister sobre questões de notação e sobre o círculo de Bach (ibidem p. 10-11) constituem um legado inestimável. Para os padrões atuais, alguns dos conceitos adotados por Werckmeister são compreensivelmente inexatos. Afinal, trata-se de uma obra publicada pela primeira vez em 1681, há não menos que 340 anos. Ainda assim, suas observações sobre os efeitos da música sobre o humor de seus ouvintes fornecem uma pista importante para a análise da música em contexto de tradução.

Partindo dos ensinamentos sobre humores e temperamento humano formulados por Empédocles, Hipócrates e Aristóteles, em que os quatro elementos (ar, fogo, terra e água) estão associados aos temperamentos humanos (otimista, colérico, melancólico e calmo) Werckmeister propôs o conceito de afetos musicais (ibidem p. 25). O temperamento otimista produziria os afetos amor e alegria; o colérico produziria a ira e a fúria; o melancólico, a dor e o pesar; e o fleumático, ou calmo, produziria paz e contentamento (ibidem p. 25). A música seria, portanto, um modo de traduzir a experiência humana desses afetos inefáveis.

A relação entre música e humor é intuitivamente percebida. Tome como exemplo a música vibrante de um samba enredo composto para um desfile de carnaval. O ritmo acelerado, o pulso fortemente marcado pela percussão da bateria, o registro de voz elevado, tudo harmoniza com o humor esfuziante do evento. Como reagiria a escola sambista se o samba fosse substituído pela modinha? É difícil imaginar que o humor não seria afetado por tal substituição. É fácil perceber que haveria uma inversão do extrovertido e vibrante para o contido e intimista. O que é fácil de perceber ainda é difícil de explicar em termos científicos. Werckmeister fez o que pôde para encontrar uma explicação científica, atrelando o que era facilmente percebível a filosofias gregas sobre o temperamento humano. Werckmeister não conseguiu provar cientificamente, não pelos padrões atuais, que a música traduz emoções e temperamentos humanos. O êxito limitado de Werckmeister não impediu novas incursões exploratórias no campo da música como recurso semiótico de tradução. Considere os exemplos a seguir.

Entre março e maio de 1914, Erik Satie (1866-1925) produziu uma coleção de 20 partituras que é percebida pela pesquisadora britânica Helen Minors como tradução de uma coleção de gravuras em água-forte, criada por Charles Martin (1884-1934) para uma edição especial da revista Gazette de bon ton. Em 1924, ao falar sobre sua composição musical para o balé Mercure (1924), cujo cenário e figurino haviam sido desenhados por Pablo Picasso, Satie afirmou que tentou “traduzir musicalmente” o registro artístico de Picasso (MINORS, 2013, p. 107). Minors argumenta que a escolha do termo traduire indica que Satie reconhecia a interdependência entre artes e que pensava em termos de tradução ocorrendo além da linguagem (ibidem).

A música de Satie, segundo a Encyclopædia Britannica (ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, 2012), teve forte influência nas obras de Les Six, os seis compositores franceses do começo do século XX que se organizaram para produzir uma forte reação contra o “Romantismo Alemão de Richard Wagner e Richard Strauss, e contra o cromatismo e a orquestração exuberante de Claude Debussy” (ibidem n.p.). Contado entre Les Six estava o compositor franco-suíço Arthur Honegger (1892-1955), que tinha reservas declaradas quando ao talento musical de Satie e que nunca se tornaria admirador da música dele. Em uma carta para o pianista e compositor Francis Poulenc (1899-1963) em 10 de maio de 1954, Honegger disse que considerava Satie “um espírito excepcionalmente honesto, mas privado de qualquer habilidade criativa” e  sugeriu que, em se tratando de Satie e de sua música, aplicava-se o ditado “faça o que eu digo, nunca o que eu faço” (HALBREICH, 1999, p. 41). Honegger parece ter adotado a estratégia de fazer o que Satie dizia no que diz respeito à tradução intersemiótica, ao compor a peça Pacific 231, que estreou em maio de1924. Em uma entrevista concedida por Honegger, parcialmente publicada na impressão da partitura de Pacific 231, o autor declarou:

Sempre fui fascinado por locomotivas. (…) O que eu estava procurando não era a imitação dos ruídos da locomotiva, mas a tradução de uma impressão visual e de um prazer físico através da construção musical. Tal tradução está fundamentada em contemplação objetiva: o respirar tranquilo da máquina em repouso, o trabalho de acumular vapor e, daí, o ganho gradual de velocidade, culminando em uma visão lírica e envolvente de um trem pesando 300 toneladas, varando a noite a 120 quilômetros por hora. (…) Em Pacific eu buscava uma noção extremamente abstrata e totalmente ideal: a de dar a impressão de uma aceleração matemática do ritmo, ao passo que a velocidade diminuía.

Arthur Honegger (HALBREICH, 1999, p. 351).

Honegger fez observações e formulou conceitos importantes para nosso exame da tradução intersemiótica envolvendo o código musical, aos quais retornaremos oportunamente.

Em 1930, na esteira de Pacific 231, de Honegger, Heitor Villa-Lobos compôs “Bachianas Brasileiras Nº 2, Quarto Movimento, Tocata: O Trenzinho do Caipira” (MUSEU VILLA-LOBOS, 2018). Norton Dudeque aborda a composição dessa peça de Villa-Lobos como um caso de dupla intertextualidade no sentido, proposto por Julia Kristeva, de “transposição de um sistema de signos em outro que remete a um significado distinto” (DUDEQUE, 2013, p. 42). Em nota de tradução sobre o termo “intertextualidade”, originalmente introduzido por Julia Kristeva, a equipe de tradução do livro Desire in Language, explica que o conceito expresso pelo termo intertextualité tem sido frequentemente mal entendido.

Ele nada tem que ver com questões de influência de um autor sobre outro, ou com as fontes de uma obra literária; ao contrário, tem que ver com os componentes de um sistema textual, como o romance, por exemplo. Ele é definido em La Révolution du langage poétique como a transposição de um ou mais sistemas de signos em outro, acompanhado por uma nova articulação da posição enunciativa e denotativa. Qualquer prática significante é uma área (no sentido de espaço cruzado por linhas de força) em que vários sistemas de significação passam por tal transposição. (KRISTEVA, 1980, p. 15)

Ainda, conforme expresso por Kristeva, “intertextualidade” seria uma permuta entre textos: “no espaço de determinado texto, várias declarações tomadas de outros textos são postas em intercessão e se neutralizam mutuamente” (KRISTEVA, 1980, p. 36)26F[3]. Segundo esse conceito de “intertextualidade”, uma nova articulação da posição enunciativa e denotativa através da transposição de uma prática significante ocorre na Tocata de Villa-Lobos. Como sugerido pelo título “Bachianas”, emerge na peça de Villa-Lobos a intertextualidade com a obra de Johann Sebastian Bach e com a peça Pacific 231, de Arthur Honegger.

A definição de “intertextualidade” feita por Kristeva guarda o que poderia ser descrito como uma sobreposição de conceitos com a tradução intersemiótica. “Sistemas de signos” poderiam ser descritos como “sistemas semióticos” que, por sua vez, podem ser classificados em texto verbal, texto visual e texto aural. A transposição de obras originalmente produzidas à base de texto aural para texto visual, como ocorre no segmento “A Sinfonia Pastoral” (Sinfonia n.º 6, de Beethoven, Op. 68, composta entre 1802 e 1808) do longa metragem “Fantasia”, de Walt Disney (1940), corresponde a “uma nova articulação da posição enunciativa e denotativa” de uma prática significante. De modo semelhante, ao compor uma nova articulação da posição enunciativa e denotativa em Pacific 231 e em Bach, Villa-Lobos assumia o papel de tradutor intrasemiótico. O poeta Ferreira Gullar, por sua vez, teria assumido a função de tradutor intersemiótico ao compor a letra para a música “O Trenzinho do Caipira”.

Em outubro de 1979 estreou o Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans Wake27F[4] (Urratório, um Circo Irlandês sobre Finnegans Wake – tradução minha), do compositor americano John Cage (1912-1992), pela rádio WDR, em Colônia, Alemanha. Segundo o pesquisador e compositor britânico Alan Stones, Cage descreveu sua obra como “um modo de traduzir um livro em uma performance sem atores, uma performance que é tanto literária quanto musical, ou uma ou outra” (STONES, 2013, p. 121).

Stones acrescenta que John Cage “transferiu e traduziu ideias e técnicas entre música, texto e artes visuais” (ibidem p. 133). No caso de Roaratorio, uma tradução multimodal em que John Cage verte em música a obra Finnegans Wake, de James Joyce (1939), a música emprega elementos não musicais, como ruídos, vozes em palavras soltas não cantadas e sons de animais que implicam uma ruptura com a música, segundo a definição tradicional do termo. O emprego desses recursos semióticos traduz a ruptura com os moldes tradicionais de linguagem literária, observada na obra de Joyce, como exemplificado no excerto The fall (A queda) abaixo.

(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawnt oohoohoordenenthurnuk!) of a once wallstrait oldparr is retaled early in bed and later on life down through all christian minstrelsy. The great fall of the offwall entailed at such short notice the pftjschute of Finnegan, erse solid man, that the humptyhillhead of humself prumptly sends an unquiring one well to the west in quest of his tumptytumtoes: and their upturnpikepointandplace is at the knock out in the park where oranges have been laid to rust upon the green since devlinsfirst loved livvy. What clashes here of wills gen wonts, oystrygods gaggin fishygods! BrÇkkek KÇkkek KÇkkek KÇkkek! K¢ax K¢ax K¢ax! Ualu Ualu Ualu! Quaouauh! 

James Joyce (1939, p. 1)

As vozes que falam, mas nada dizem, da obra de Cage, ecoam as longas sequências em Finnegans Wake cujo sentido é notavelmente obscuro, impenetrável para quem não teve iniciação na obra de Joyce, seja pelo abandono de regras sintáticas seja pela criação de portmanteux conjugando termos de mais de uma língua, ou, ainda, pela elevação poética da forma sonora em detrimento do significado semântico.

Em 2002, o compositor estoniano Arvo Pärt compôs a peça para piano e orquestra intitulada LamenTate, que estreou em fevereiro de 2003 no Turbine Hall of Tate Modern Museum, emLondres28F[5]. Acompanha a peça a dedicatória Homage to Anish Kapoor and his sculpture “Marsyas”29F[6] (Homenagem a Anish Kapoor e sua escultura “Marsias”). A escultura de Kapoor foi montada e apresentada pela primeira vez ao público junto com a estreia da peça musical. A musicóloga e compositora Debbie Moss explica que Pärt acrescenta ao seu conceito de homenagem, em LamenTate, “a ideia de troca inter-mídia (…) ao elaborar um conceito de reciprocidade entre mídias diferentes, focando na relação entre obra musical e objeto de arte” (MOSS, 2013, p. 135). A autora argumenta que, apesar do questionamento de muitos artistas sobre a eficácia da transferência interartística, a ideia de transferência de conteúdo é geralmente aceita nos casos em que um compositor se permite influenciar por outra obra de arte (ibidem, p. 136). O que Debbie Moss nomeia como “transferência interartística”, Julia Kristeva, como vimos, classifica como intertextualidade, no sentido de ser uma nova articulação da posição enunciativa e denotativa da “prática significante”, e não no sentido mal interpretado do termo introduzido por Kristeva de que “intertextualidade” refere à influência de um autor e sua obra sobre outro. Nesse caso, como nos casos citados anteriormente, a tradução multimodal resulta da identificação e estratificação de similaridades entre diferentes formas de arte e do uso de recursos semióticos próprios do modo textual do código meta para construir a nova produção textual.


[1] A referência e o correspondente sentido do termo “abstrato”, nesse contexto, é a significação semântica. Os elementos mínimos da música são desprovidos, ou afastados, desse tipo de significação. Tendo a música (e não apenas seus componentes mínimos) como núcleo referencial, ela é concreta em si mesma, posto que não deriva da significação semântica. Entendo que o sentido das categorias de “concreto” e “abstrato” variam de acordo com o referencial.

[2] Em consulta feita em 24/01/2021.

[3] Essa concepção de “intertextualidade/intertexto” se harmoniza com o uso histórico do termo correspondente “intertextus”, em latim, para significar “entretecido, entrelaçado” (OXFORD UNIVERSITY PRESS, 1968, p. 950).

[4] Disponível em https://youtu.be/bdHe4c10smY.

[5] Estreia mundial em 07/02/2003 com orquestra London Sinfonietta, sob direção do maestro Alexander Briger (PÄRT, 2002, n.p.).

[6] Detalhes em http://anishkapoor.com/126/marsyas.