A propósito de intraduzibilidade

Para Jakobson, “poesia é por definição intraduzível” (JAKOBSON, 1959, p. 238). O motivo básico de tal asserção seria que, como a arte, a construção poética não tem função representativa a partir do signo semântico. Nas palavras de Jakobson, “na poesia, as equações verbais (…) carregam sua própria significação autônoma” (ibidem). Ou seja, a poesia não “significa” algo, ela “é” algo. Paralelamente, Paulo Ronai, conforme citado por Haroldo de Campos, vê na “impossibilidade teórica” (intraduzibilidade) de textos criativos a “assertiva de que tradução é arte. (…) “O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível”” (CAMPOS, 1992, p. 34).

Essa aporia, segundo a entendo, realça a hipótese de que a intraduzibilidade do texto criativo é, pelo menos parcialmente, uma questão terminológica. Ou seja, depende de como se define o termo “tradução”. Assim como poeta e poesia estão em relação causal recíproca-simbiótica-ambivalente, em que uma parte não existe sem a outra, a tradução do intraduzível, teoricamente impossível, materializa o conceito de tradutor que a traduz através do mesmo tipo de relação causal. A negação da impossibilidade teórica pelo fato empírico sugere a necessidade de revisão do arcabouço teórico pertinente aos modelos de tradução. As contribuições de reflexões teóricas sobre o tema da intraduzibilidade feita por vários autores, dentre eles, Roman Jakobson (On Linguistic Aspects of Translation, 1959), Walter Benjamin (A tarefa do tradutor, 2008), Jacques Derrida (Torres de Babel, 2002) e Haroldo de Campos (Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária, 1992), seriam evidências que corroboram a necessidade de um modelo teórico mais abrangente, no concerne intraduzibilidade. Em linhas gerais, esses autores concordam com o paradigma da intraduzibilidade do estético, proposto por de Immanuel Kant, em 1790:

Eu arguo que este princípio [o espírito,ou senso estético que anima a mente] não é senão a habilidade de exibir ideias estéticas; e, por ideia estética me refiro a uma representação da imaginação que desencadeia muito pensamento, mas que de modo algum o determina; isto é, nenhum conceito [específico] é adequado à sua expressão completa pela linguagem de um modo que esta nos permita sua compreensão. É fácil perceber que uma ideia estética é a contraparte (pingente) de uma ideia racional que, em contrapartida, é um conceito ao qual nenhuma intuição (ou representação da imaginação) pode ser adequada (KANT, 1987, p. 182).

No artigo O princípio da intraduzibilidade, Márcio Seligmann explica que “Kant acreditava que desde que se respeitasse os limites do mundo fenomênico, este poderia ser traduzido em conceitos. (…) Para ele as ideias estéticas não poderiam ser traduzidas para as da razão” (SELIGMANN-SILVA, 1998, p. 17). Essa visão kantiana implica a compreensão do mundo como texto passivo de tradução, mas coloca em relação de intraduzibilidade os campos conceituais estético e racional. Ainda segundo Seligmann, a transposição do argumento na Crítica do Julgamento Estético de Kant, de que nenhuma linguagem pode tornar completamente compreensível uma ideia estética, significa que “a tradução de obras poéticas deveria limitar-se a uma determinada faculdade, a saber à imaginação. Entendimento e razão não podem atuar aqui: logo a tradução (de poesia) deve ser eminentemente criativa, é poiesis” (ibidem p. 18). O termo poiesis refere à atividade de criação, de trazer algo novo à existência. Em certo sentido, toda tradução é algo novo. No entanto, nesse contexto, o termo poiesissugere atividade intelectual criativa, que é mais do que apenas repetir fielmente um texto fonte em uma forma alvo.

O contraste entre a impossibilidade teórica da tradução da obra de arte, ou texto criativo (CAMPOS, 1992, p. 35), e a aporia no fato empírico dessa espécie tradução, por outro lado, ressalta que o modelo teórico tradicional da tradução seria insuficiente para contemplar todas as possibilidades de trânsito de sentido. Por modelo tradicional, refiro à abordagem que empreende oferecer uma explicação racional para cada ato tradutório. O argumento de Seligmann, de que a tradução da obra de arte “deve ser eminentemente criativa” (SELIGMANN-SILVA, 1998, p. 18), harmoniza com a assertiva de Haroldo de Campos, para quem toda tradução de texto criativo é nomeada “recriação” (CAMPOS, 1992, p. 35). Termos como “transcriação”, “transmutação”, “transdução” e outros têm sido propostos para nomear esse tipo de tradução mais imaginativa. Ao que parece, porém nenhum desses termos é unanimemente aceito. Entretanto, todas essas alternativas em nomenclatura divergem de e convergem para a tradução no que seriam movimentos cíclicos do debate terminológico.

Como argumentei na seção anterior deste capítulo (p. 56), música e poesia são formas estéticas gêmeas. Se para o modelo “tradicional” da tradução a estética da poesia constitui um caso de intraduzibilidade, isso também se aplica à música. Portanto, o modelo de tradução suficiente para traduzir a estética musical tem de ser outro que não o “tradicional”. Pelos motivos explicados na seção de terminologia do capítulo anterior (p. 42), opto pelo uso do termo tradução multimodal, que entendo como moldura suficientemente compreensiva para a tradução da obra de arte. Que base teórica há para sustentar a tradução multimodal? O próximo capítulo oferece uma visão de proposições importantes para o tema em pauta, desde o postulado Charles Peirce, passando pela proposta de Gunther Kress, Theo Van Leeuwen e outros, até as pesquisas mais recentes sobre a tradução multimodal.


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