Música e poesia; música é poesia

A reflexão neste trabalho sobre o que é música em contexto de tradução enseja notar-se que a tradução de recursos semióticos de e/ou para o código musical incorpora características em comum com a tradução de poesia. Desde os primórdios da história da cultura ocidental, música e poesia compartilham raízes de identidade. A etimologia da palavra “música” é reveladora dessas raízes comuns. Na mitologia grega, as musas são prole de Zeus e Mnemósine, dirigidas por Apolo para cantar e perpetuar o poder de Zeus pelo poder da memória. O termo “musa” refere a “cada uma das nove deusas que presidiam as artes liberais” e tem origem no grego Μοῡσα, pelo latim Musa (HECKLER, BACK e MASSING, 1984, p. 2851, 2852). Do termo Μοῡσα deriva “musikē tekhnē” (τε’χνη), “a arte das musas”.

Em português, como ocorre com o termo correspondente em outras línguas, o termo “técnica” é primariamente associado ao modo de fazer algo. O termo “técnica vocal”, por exemplo, está associado não à produção intelectual, mas ao fazer mecânico de produção de sons com o aparato fonador. Assim, em português, a carpintaria está para a técnica como a escultura está para a obra de arte. Jardim argumenta que, de acordo com Heidegger, o termo grego τε’χνη (técnica), porém, “não designa somente o fazer do artesão e sua arte, mas também a arte no sentido das belas artes” (JARDIM, 1993, p. 57). Jardim acrescenta que a técnica (τε’χνη) “faz parte do pro-duzir, da ποι’ησις (poiésis), logo ela é algo de poético. (…) O ponto fundamental na τε’χνη não está circunscrito a um fazer, no sentido de manejar, nem tampouco na utilização de meios, mas no ser ela também uma forma de desvelamento” (ibidem). Essa dimensão da técnica como forma de desvelamento, de criação poética, foi apagada da técnica moderna. O que nos interessa aqui, porém, é compreender como o fazer poético está vinculado ao papel das musas e, por extensão, como música e poesia, desde os primórdios, brotam do mesmo tronco.

Em sentido amplo, música é poesia, poesia é música. Em seu livro Música: vigência do pensar poético, Jardim argumenta que a música é o meio mais propício ao fazer poético.

A música como o lugar do mais alto grau de qualquer real se põe como o lugar propício para a vigência do pensar poético. Significa: o lugar em que este pensar tem o mais alto grau de realização de sua vigência. Talvez de nenhuma outra forma o pensar poético seja capaz de se fazer vigoroso como na música.

Antonio Jardim (2005, p. 23)

Dito de outro modo, se suficientemente entendo a proposição acima, a música é o melhor solo para o crescimento do pensar poético. É nesse solo que o pensar poético encontra e dele absorve “nutrientes” para seu desenvolvimento à plenitude. O comparativo “mais” pressupõe elementos “menos”, o que significa que o pensar poético pode vicejar e vigorar em meios, ou solos, menos potentes que a música. Quando temos dificuldades em perceber música e poesia como entes da mesma provenientes da unidade e só as enxergamos como áreas distintas, isso talvez indique que a técnica moderna, que suprime por apagamento o desvelar poético para privilegiar o fazer mecânico, tem mais influência sobre nós do que nos demos conta. Tal dificuldade certamente realça o êxito das barreiras conceituais que insistem em categorizar pelo mapeamento das diferenças, ao invés de pelos atributos comuns.

Pode ser que o purismo semiótico tenha tido influência no surgimento da barreira conceitual que busca separar o que, segundo me parece, iria melhor se mantido uno. Tal barreira conceitual talvez recorra a argumentos distintivos a respeito das duas artes: a música só existe durante sua execução, a poesia (discutivelmente30F[1]) não; a música não faz uso de unidades semânticas, a poesia usa palavras com significado definido; mesmo os pássaros fazem música, mas a poesia é arte unicamente humana. A ideia da separação conceitual entre música e poesia parece tão equivocada quanto o argumento de que os pássaros fazem música. Os pássaros podem produzir sons agradáveis, harmônicos e melodiosos, em intervalos rítmicos definidos e identificáveis segundo padrões musicais. Produzir sons musicais, porém, é apenas uma das instâncias do fazer música. Um piano produz sons musicais, qualquer instrumento musical o faz, mas nenhum instrumento compõe música.

Uma vez demolida a barreira conceitual entre música e poesia, percebe-se mais claramente que os argumentos sobre traduzibilidade e intraduzibilidade seriam aplicáveis de maneira predominantemente uniforme, ainda que se decida, por motivos pragmáticos, manter o uso dos rótulos “música” e “poesia”. Quem traduz um soneto tem preocupações estéticas muito mais abrangentes do que a mera significação das palavras, preocupações tais como ritmo, métrica, rima, forma, fluxo, que tornam secundário o significado semântico do poema. A depender da abordagem, poesia pode ser traduzível ou intraduzível.


[1] Discutivelmente porque o fazer poético requer o exercício intelectual, sem o qual a “mágica” da poesia não pode acontecer. Diferente de um texto técnico, como um manual de instruções, por exemplo, que é construído de maneira a eliminar qualquer margem, por menor que seja, para ambiguidade ou para a interpretação, a poesia se renova e desvela novas possibilidades de sentido a cada leitura, que variam de acordo com o contexto (época, lugar, sociedade e indivíduo). Assim, a poesia não seria apenas um conjunto de caracteres grafado em papel em determinada ordem, cujos significados possíveis estariam encerrados nas palavras, mas uma empresa que só se completa com a intervenção de quem a lê.