Os fatores sociais e os modos de criação de significado
Do ponto de vista multimodal, o texto parte de ser percebido como integrante de um sistema estável, com domínios estabelecidos e limites claros, para ser entendido como resultado do emprego simultâneo de recursos associados a diferentes sistemas semióticos. Essa seria uma das razões pelas quais Gunther Kress advoga a moção “de sistema semiótico para recurso semiótico” (KRESS, 2010, p. 5). Para Kress, importaria mais o “recurso semiótico” que é usado para criar significado do que o sistema semiótico a que tal “recurso” esteja primariamente associado. Assim, a adoção da moção sugerida por Kress, que tira o foco do sistema para colocá-lo no recurso, atenuaria a ausência do sistema tátil no conjunto canônico dos sistemas semióticos.
Ao abordar o aumento do interesse em estudos sobre multimodalidade textual, o autor explica que, embora imagens e sons sejam contados desde sempre como recursos para criação de significados e suas manifestações tenham sido “objetos de interesse em áreas de trabalho acadêmico distintas”, o que há de diferente é “uma tentativa de reunir todos os recursos para a criação de significado debaixo de uma única cobertura teórica, como parte de um único campo (…) uma teoria unificadora” (ibidem). O autor falava da atenção dispensada às questões sobre multimodalidade desde a última parte da década dos 1990 até o final da década dos 2000. Esse período foi uma época de grande transformação nos modos e meios de comunicação. O final dos anos 90 e o começo dos 2000 testemunharam o surgimento e a disponibilização em larga escala de meios de comunicação que, por sua vez, tiveram impacto sem precedentes no processo de globalização.
Kress argumenta que a globalização nesse período vai além do aspecto financeiro. Ela abrange também as “condições que possibilitam que características de um lugar estejam presentes e ativas em outro, sejam elas econômicas, culturais ou tecnológicas” (ibidem). Na década que se passou desde essa publicação de Kress, não há dúvida de que a tendência por ele observada não apenas se manteve como ganhou ímpeto. Produtos, mais do que nunca, cruzam fronteiras nacionais à procura de novos mercados, ou em resultado da busca por redução nos custos de produção propiciadas por mão de obra obtida em termos muitas vezes análogos aos de escravidão. Questões culturais que afloram derivadas de acontecimentos locais rapidamente “viralizam”, como efeito do fácil acesso a uma rede de comunicações instantânea. As mudanças tecnológicas têm contínuo e crescente impacto na maneira em que as pessoas se relacionam e se comunicam.
Os memes digitais são um exemplo das mudanças nas formas de comunicação, um que faz uso expressivo de recursos semióticos multimodais. As fábricas de fake news, que também se utilizam de recursos semióticos multimodais para dar uma feição de verdade ao seu produto, têm grande potencial de moldar o mundo. A evidência sugere que os resultados das eleições presidenciais no Brasil, em 2018, e nos Estados Unidos, em 2016, foram afetados por tais fábricas. No Reino Unido, profundas mudanças políticas, econômicas e sociais causadas pelo Brexit21F[1] (BASTOS e MERCEA, 2019, p. 38-54; CADWALLADR, 2019) também estão alegadamente atreladas à disseminação de notícias falsas. Os modos de criar significados, ou modos semióticos, estão imbricados na base do tecido da sociedade e operam diretamente em sua conformação. As barreiras sócio-políticas e geográficas perdem força na medida em que os meios de comunicação tendem a transcender tais limites. A disponibilidade ampliada de recursos digitais de tradução automática, somada ao papel comunicativo das imagens, atenua barreiras linguísticas antes intransponíveis para a maioria das pessoas. Além disso, a comunicação nas chamadas “redes sociais” online acrescenta carga monumental à demanda por textos multimodais. Os espaços restritos nas meadas do Twitter, que atualmente comporta apenas 280 caracteres, e do Facebook22F[2], cujas postagens mais bem-sucedidas não excedem 80 caracteres, fazem que seus usuários prefiram e busquem formas de expressão multimodal, posto que nessas e em outras mídias similares o código semiótico verbal é frequentemente preterido frente ao multimodal.
Tal é o cenário em que a prática da tradução e o texto traduzido se inserem. Tendo presente esse quadro, entendo que a perspectiva da semiótica-social para uma teoria da multimodalidade defendida por Gunther Kress (2010, p. 54-78) seria um viés produtivo para a elaboração de um modelo de análise da tradução, admitindo-se que todo texto tenha graus variáveis de multimodalidade. Ao defender o deslocamento do foco do “sistema semiótico” para o “recurso semiótico”, Gunther Kress parece ressaltar que os bons modelos teóricos de outrora podem não ser suficientes, ou pelo menos não tão eficazes quanto desejável, para analisar o mundo contemporâneo marcado por suas instabilidades e repentinas mudanças. Uma vez aceita a influência dos textos multimodais sobre nós e sobre o mundo à nossa volta, os sistemas de governo e política, suas questões de comércio, economia, educação e cultura, o esforço para compreender as relações textuais a partir dos sistemas e recursos semióticos diversos torna-se uma necessidade.
[1] Dois exemplos de memes empregados para influenciar os cenários político, econômico e social podem ser vistos nos dez segundos contados a partir de 8min19seg da fala da jornalista investigativa Carole Cadwalladr, disponível no TED Talks (CADWALLADR, 2019).
[2] Embora cada postagem no Facebook atualmente comporte até 63.206 caracteres, Jeff Bullas recomenda que elas não excedam 80 caracteres (BULLAS, 2012). O site HubSpot apresenta estatísticas que apontam que postagens no Facebook com 12 a 14 palavras (ou 40 caracteres) são as que alcançam maior engajamento (COX, 2019).