Metodologia e análise musical

Este capítulo tem o objetivo duplo de apresentar brevemente as premissas metodológicas adotadas neste trabalho e a análise do método “melodia das montanhas” como processo tradutório multimodal. A primeira parte explica de modo sintético o que é o paradigma construtivista e porque este foi adotado. A parte concludente analisa o processo de transposição de texto visual em fotografia para código musical, criado pelo maestro Heitor Villa-Lobos para fins didáticos.

Metodologia

A pesquisa documental, em parte apresentada nos capítulos anteriores, adotou métodos qualitativos segundo o paradigma construtivista. Phakiti e Paltridge descrevem esse paradigma como “uma filosofia de pesquisa que aborda realidades sociais (por exemplo, culturas, objetos culturais, instituições, valores) como múltiplas e dependentes de quem está envolvido, de o que está sendo estudado e do contexto em que tal estudo é realizado” (PHAKITI e PALTRIDGE, 2015, n.p.). Ou seja, uma filosofia dependente do pesquisador ou pesquisadora, do objeto de estudo e do contexto de pesquisa. Assim, no nível ontológico, busco reunir algo do que se sabe a respeito da tradução multimodal envolvendo música e recursos semióticos de outros modos textuais. No nível epistemológico, procuro entender o modo como nos relacionamos com o que tentamos descobrir, no sentido de determinar os graus de objetividade e/ou subjetividade necessários para o êxito da pesquisa. Por fim, no nível metodológico, diviso uma maneira adequada para determinar o tipo de abordagem e subsequentes procedimentos que seriam adequados às relações tradutórias multimodais de sentidos veiculados em modos textuais não verbais.

A abordagem construtivista foi adotada porque entendo a tradução, em especial a tradução multimodal, como uma realidade inserida em uma multiplicidade de realidades socialmente construídas. Essa escolha implicou detrimento das abordagens “positivista”, que supõe a compreensão objetiva da realidade, “pós-positivista”, que advoga a objetividade como um guia para aproximação da realidade, e “pragmática”, que seria uma abordagem mais fluida na seleção de métodos, elegendo-os conforme sua adequabilidade à resolução do problema de pesquisa. Percebo a “objetividade”, que rege os paradigmas “positivista” e “pós-positivista”, como uma abstração, no sentido de apenas existir a partir de uma subjetividade e, portanto, inadequada para tratar das questões sociais de que se cerca a tradução. O “pragmatismo”, que “não é um paradigma no sentido tradicional” (ibidem), seria uma abordagem produtiva por sua elasticidade e abrangência conceitual, mas menos adequada que o construtivismo, com sua “visão múltipla das realidades sociais” (ibidem), de agentes em tais realidades (o pesquisador ou a pesquisadora, inclusive) e de contextos de pesquisa.

Parti da suposição de que é possível estabelecer relações tradutórias em instâncias da tradução em que música não verbal figure na posição recurso semiótico fonte ou de recurso semiótico alvo. A partir dessa suposição, busquei reunir exemplos documentados de obras musicais que explicitam ou sugerem intenção tradutória por parte de seus autores. Ao comentar exemplos reunidos, realcei aspectos e elementos (ou recursos semióticos) dos códigos em tradução, não com o objetivo de encontrar equivalência, mas de mapear procedimentos da pessoa que traduz tais códigos para compreender as relações intrínsecas ao ato tradutório.

A etapa seguinte compreendeu o levantamento de teorias à base das quais seja possível empreender uma análise de casos de tradução multimodal envolvendo música e outro recurso semiótico. Partindo da teoria geral do signo, de Charles Peirce, foram examinadas proposições teóricas de Walter Benjamin, Roman Jakobson, Gideon Toury, Patrick Juslin, Gunther Kress e Theo Van Leeuwen, dentre outros, na medida em que tais proposições se relacionam ou possam ser conceitualmente relacionadas ao objeto de estudo. O trabalho de pesquisadores interessados em tradução multimodal serviu de insumo na construção de um modelo conceitual adequado à etapa seguinte deste trabalho.

A proposta de análise de uma obra musical, o que acrescenta a este trabalho de pesquisa um caráter mais do que exclusivamente documental, constitui um esforço em prol da identificação de possíveis relações tradutórias entre obras de naturezas, ou modos textuais, diversos. Assim, em lugar de uma análise musical restrita ao modelo de uma escola de música, desenvolvi um modelo de análise triangular em que (1) aspectos relevantes do texto fonte são descritos e analisados, passando pela (2) análise musical propriamente dita, com a identificação de perfil melódico correspondentes para, por fim (3) identificar, descrever e analisar possíveis sobreposições de modos expressivos entre o recurso semiótico fonte e recurso semiótico alvo que classifico como tradução. Para tal análise, selecionei a obra New York Skyline, do maestro e compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos.

A seleção da peça musical e seu texto fonte analisado neste trabalho teve como critério a intenção tradutória, ainda que não explicitamente declarada, de seu autor. Entendo que o termo “intenção tradutória” oferece margem para contestação, quando não se tem acesso ao autor da obra analisada. Esclareço que tal termo significa, no âmbito deste trabalho, as estratégias de [re]significação, expressão e representação reconhecidas por alguns teóricos da semiótica e da tradução como produtivas e (talvez) recorrentes nos Estudos da Tradução. Concordo com Steiner que, de sua consideração da teoria geral do signo, de Charles Peirce, e da proposição de um modelo triádico de tradução, por Jakobson, conclui que a “tradução, portanto, é a condição perpétua e inescapável da significação” (STEINER, 1998, p. 260). Steiner acrescenta que

Sendo, com efeito, um modelo de compreensão e do inteiro potencial de declaração, uma análise da tradução incluirá formas intersemióticas como gráficos impressos, o fazer ou o arguir de proposições através da dança, da música de fundo para um texto, ou mesmo da articulação de um humor e significado na música per se” (ibidem, p. 260).

Entendo que o movimento de significação e ressignificação inerente à composição musical e ao seu par tradutório os qualifica como objetos suficientes de análise. Essa análise foi orientada de acordo com o tema deste trabalho, de modo que seu foco são as relações tradutórias multimodais entre a peça analisada e suas possíveis interpretações visuais, aurais e verbais.