Análise musical em contexto de tradução multimodal

O propósito desta seção é analisar a obra musical New York Skyline Melody (VILLA-LOBOS, 1957) 41F[1], composta para piano solo por Heitor Villa-Lobos, em 1939, para verificar a possível ocorrência de instâncias de tradução multimodal/interartística e os processos tradutórios empregados pelo autor. Esta análise compreende considerações sobre o método composicional “Melodia das Montanhas”, criado por Villa-Lobos para fins didáticos. Importa dizer que minha proposta de análise não se orienta pelas técnicas tradicionais de análise musical, mas procura adotar uma abordagem multidisciplinar.

Heitor Villa-Lobos nasceu a 5 de março de 1887, em Laranjeiras, Rio de Janeiro. Seu pai, Raul Villa-Lobos, era músico amador e, como tal, exerceu forte influência musical sobre Villa-Lobos. A página de biografia de Villa-Lobos, no sítio da web do Museu Villa-Lobos, explica que desde os seis anos de idade a música fazia parte da rotina de Villa-Lobos (MUSEU VILLA-LOBOS, s.d.). Após a morte de seu pai, em 1899, Villa-Lobos se desfez da biblioteca que herdara e financiou excursões por vários estados brasileiros, entre 1905 e 1912. Essas viagens teriam deixado profundas marcas em sua obra, posto que seu objetivo era conhecer em primeira mão a cultura popular brasileira.

Villa-Lobos, que havia participado da Semana de Arte Moderna, em 1922, foi criticado por jornais por causa do aspecto dissonante de suas composições. Em resposta a essas críticas, anos mais, tarde ele explicou:

Não escrevo dissonante para ser moderno. De maneira nenhuma. O que escrevo é consequência cósmica dos estudos que fiz, da síntese a que cheguei para espelhar uma natureza como a do Brasil. Quando procurei formar a minha cultura, guiado pelo meu próprio instinto e tirocínio, verifiquei que só poderia chegar a uma conclusão de saber consciente, pesquisando, estudando obras que, à primeira vista, nada tinham de musicais. Assim, o meu primeiro livro foi o mapa do Brasil, o Brasil que eu palmilhei, cidade por cidade, estado por estado, floresta por floresta, perscrutando a alma de uma terra. Depois, o caráter dos homens dessa terra. Depois, as maravilhas naturais dessa terra. Prossegui, confrontando esses meus estudos com obras estrangeiras, e procurei um ponto de apoio para firmar o personalismo e a inalterabilidade das minhas ideias.

Heitor Villa-Lobos (Museu Villa-Lobos, s.d.)

O relato revela o interesse de Villa-Lobos em cartografia, geografia, florestas, recursos naturais, na alma da terra e na cultura popular. De certo modo, Villa-Lobos descreve sua busca identitária, a procura por sua personalidade musical e voz exclusivas. Do excerto acima, destaco o interesse de Villa-Lobos em “obras que, à primeira vista, nada tinham de musicais” (ibidem). À primeira vista, fotografia e música talvez nada tenham em comum. Villa-Lobos, entretanto, divisou a relação entre as duas artes, estabelecendo uma maneira de traduzir uma pela outra. Dessa relação se ocupam as páginas seguintes.

A obra New York Skyline Melody, para piano(W407), de Heitor Villa-Lobos (1939), utiliza a técnica composicional conhecida como “melodia das montanhas” (FELICÍSSIMO, 2009, p. 89). Como sugerido tanto pelo nome da obra quanto pelo nome da técnica empregada em sua composição, o autor explora relações entre os contornos na linha do horizonte e a expressão musical. A partir de uma fotografia com vista para o porto de Nova Iorque, sobreposta por “papel milimetrado acrescido de um eixo vertical com escala cromática do piano formada de 88 notas (sic)” (ibidem, p. 89), Villa-Lobos traduz em música um recurso do sistema semiótico visual, criando o que poderia ser descrito como uma “paisagem sonora” (FERRAZ, 2007, p. 85).

Em A Guide to Musical Analysis, Nicholas Cook salienta a importância da resposta à pergunta “o que a análise musical nos diz?” e sugere que uma boa maneira de lidar com esse problema é “considerar o que torna uma análise boa e outra ruim, porque isso imediatamente desencadeia a questão: boa em que sentido? boa para quê?” (COOK, 1992, p. 215). Cook acrescenta que o objetivo de uma análise não deve ser apenas descrever o que se pode conscientemente perceber, mas sim “explicar a experiência [de ouvir] em termos da totalidade de sua percepção, consciente e inconsciente” (ibidem, p. 221). Para ilustrar o que tem em mente ao falar de “totalidade de percepção”, o autor se vale de conceitos de percepção inconsciente derivados da psicolinguística e explica que não importa quanto esforço consciente se faça, é impossível perceber na fala de uma pessoa as características distintivas, como as chamou Roman Jakobson42F[2], no âmbito linguístico, cuja combinação forma os fonemas. “A percepção consciente — a compreensão do que a pessoa está dizendo — depende de percepções inconscientes” (ibidem, p. 221-222). De certo modo, a análise musical espelha o problema analítico da psicolinguística. A experiência que se tem ao ouvir música não pode ser reproduzida ou explicada através de uma análise musical puramente descritiva das “características distintivas” da música.

Para Cook, a ampla difusão do pensamento de que “o mais elevado propósito da análise musical (…) é a formação de uma teoria geral que seja aplicável a qualquer instância específica de música” (ibidem, p. 223) resulta, dentre outros fatores, da substituição do ouvinte-agente por uma teoria que “correlaciona propriedades materiais da música com a resposta estética apropriada” (ibidem, p.224). Essa seria uma visão estruturalista da análise musical. Em contraste com tal abordagem, Cook argumenta que “o ponto de uma análise é explicar o que é óbvio, a experiência da unidade musical ou outra coisa qualquer, em termos de estruturas que não são óbvias e somente podem ser deduzidas por estudo analítico” (ibidem, p. 222). Em outras palavras, a análise musical nessa moldura busca compreender como as estruturas não óbvias para a percepção consciente contribuem para a experiência da unidade musical.

Cook argumenta que o parâmetro avaliativo de uma análise musical, para determinar se esta é boa ou ruim, deveria ser o que se deseja alcançar com a análise. O autor propõe a conciliação do óbvio com o que não é óbvio na análise musical, ou antes, o estudo do não óbvio como subsídio para a explicação do óbvio. Para ilustrar isso, o processo de análise seria análogo à escavação de um poço para obtenção de água, como uma cacimba ou cisterna. A pessoa que faz a escavação, primeiro, seleciona a melhor localização para o poço a ser escavado. A seguir, com o auxílio de ferramentas manuais de escavação e de um recipiente para remoção de terra escavada do poço em construção, a perfuração passa por diversas camadas de solo, com diferentes graus de umidade, até alcançar um veio d’água com vazão suficiente para acumular água no poço. Uma vez que se encontre água, o escavador verifica se seu grau de salinidade é adequado para consumo. O objetivo derradeiro do processo é a água. Uma vez atingido tal objetivo, as etapas do processo de escavação, que na fase escavatória eram cruciais, perdem importância. Por outro lado, uma escavação que vise o estudo de camadas de solo e as propriedades físicas de sua estrutura se serviria melhor do conhecimento adquirido durante a escavação do poço do que da água que porventura fosse encontrada. De modo similar, na análise musical, a meta determina o método.

A meta da análise musical que proponho é o levantamento de possíveis relações tradutórias entre a música de Villa-Lobos e arte fotográfica. Trata-se de um estudo interdisciplinar com a participação de artes visuais, de música e da arte da tradução. Seria ótimo se existisse um modelo teórico provado e suficiente para tal análise. Ao que parece, porém, tal modelo ainda não terá sido elaborado, menos ainda testado. Minha incursão nesta seção é a primeira etapa de um processo de tentativa e erro. Não tenciono nem arvoro solucionar a questão. Ao contrário, meu objetivo é problematizar e experimentar um método prototípico de análise que coloca em interseção os Estudos da Tradução, a Música e as Artes Visuais.


[1] Partitura reproduzida na seção “anexos” deste trabalho.

[2] Jakobson argui que “é impossível explicar a percepção dos sons da fala através de algo como uma percepção auditiva independente de diferenças tonais e de ruídos. A percepção dos sons depende unicamente das leis que convertem o material acústico-motor bruto em elementos com valor semiótico (com função de signo) e, assim, depende das leis estruturais do sistema fonêmico, e não das características do som no que diz respeito tonalidade e ruído. Cada som da fala representa um composto de características distintivas e cada uma dessas características opera como um elemento de uma oposição binária que necessariamente implica o elemento oposto” (JAKOBSON, 1968, p. 38, nota de rodapé).