New York Skyline Melody: da fotografia para a música
Villa-Lobos compôs New York Skyline Melody,para piano solo, em 1939. Posteriormente, uma versão para orquestra foi apresentada durante a New York World’s Fair (Feira Mundial em Nova Iorque), em 7 de abril de 1940 (THE NEW YORK TIMES, 1940, p. 21 – em anexo). As circunstâncias em que foi composta a obra New York Skyline Melody, às vezes chamada de New York Skyline, revelam um processo criativo cujas peculiaridades, segundo entendo, a tornam elegível como objeto de estudo de tradução multimodal/interartística. De acordo com o documento “Villa-Lobos e Sua Obra”, publicado pelo Museu Villa-Lobos em 2018,
O tema principal [da peça New York Skyline Melody] é baseado na linha melódica extraída, pelo autor, do contorno dos edifícios de Manhattan (Nova York), através do processo por ele criado e denominado “Melodia das Montanhas”. Este mesmo processo foi utilizado na composição de “Sinfonia Nº 6”. (MUSEU VILLA-LOBOS, 2018, p. 79)
A imagem dos contornos dos edifícios do Baixo Manhattan, fornecida ao maestro brasileiro pelo jornalista americano Vincent Pascal, ocupa a posição de código fonte no que refiro como processo tradutório interartístico empreendido por Villa-Lobos. A peça musical New York Skyline, evidentemente, figura como código alvo. Não parece haver evidência documental acessível de que Villa-Lobos pensasse na técnica de composição “Melodia das Montanhas” como tradução. Não obstante, expressa ou não como tal, essa atividade cocriativa de Villa-Lobos, de verter em código musical uma obra fotográfica, acomoda os critérios classificatórios de tradução de texto visual para texto aural.
O musicólogo Nicolas Slonimsky, que foi recebido por Villa-Lobos em seu escritório, no Centro do Rio de Janeiro, relata que Villa-Lobos tinha o que Slonimsky chamou de “crença artística paradoxal” (SLONIMSKY, 2005, p. 218). Villa-Lobos não tinha de esperar por inspiração para compor, contou Slonimsky (ibidem). O paradoxo apontado pelo musicólogo russo-americano tem fundamento na descrição do próprio Villa-Lobos sobre sua abordagem cartesiana da composição: “Eu sou sentimental por natureza e, às vezes, minha música é um tanto melosa, mas eu nunca escrevo por intuição. Meus processos de composição são determinados pela razão fria. Tudo é calculado, construído” (ibidem). Essa integração intuitivo-cartesiana desafia a premissa comumente aceita de que a origem primária da inspiração musical seria a área conceitual do sentimento e, de certo modo, põe em xeque a dicotomia entre pensamento racional e sentimento como áreas conceituais opostas.
Duas perspectivas sobre a composição de New York Skyline foram contribuídas, a primeira por Vincent de Pascal, que entrevistou Villa-Lobos e o acompanhou durante toda a escrita da peça, e por Julio Pires, com base em entrevista concedida a ele por Villa-Lobos para a edição da revista O Cruzeiro, publicada em maio de 1940 (vide anexo II). Pela narrativa de Vincent Pascal, lê-se que
Villa-Lobos disse: “Eu, como alguém que adora sua cidade de Nova Iorque mesmo sem nunca a ter visitado, vou escrever a melodia dela especificamente para você”. Tomando uma fotografia do Baixo Manhattan, o compositor exclamou: “O sentimento que esta foto me dá é claramente menor, embora eu saiba que o interior da cidade é claramente maior. Eu a basearia em C menor.” E assim o fez, traçando rapidamente a linha do horizonte. (…) Ele fez um rascunho duplo da melodia, solfejou-a com murmúrios, ressaltou seu caráter oriental, e terminou a composição em uma hora e 50 minutos. (…) Clímax da composição errante: sua escalada, topo e descida do Edifício Woolworth” (PASCAL, 1940, n.p.).
Note-se que, segundo o relato de Pascal, Villa-Lobos associa a escolha de tonalidade à impressão psicológica nele provocada pela imagem. Pelo modelo peirceano do signo, a imagem na fotografia corresponderia ao “objeto” que desencadeia um “interpretante do signo”, ou a percepção psicológica da tonalidade menor como melhor expressão do sentimento evocado pela imagem (HARTSHORNE e WEISS, 1931, p. 2748). Fiel à sua declaração de não compor intuitivamente, Villa-Lobos mescla sua percepção psicológica, o sentimento “menor”, obviamente em referência à tonalidade musical, com dados, ou o que ele sabe sobre o “interior da cidade (…) claramente maior” (PASCAL, 1940, n.p., p. n/c). Não obstante parecer impossível saber exatamente o que Villa-Lobos tinha em mente com o emprego dos termos “menor” e “maior”, no contexto da imagem a ele apresentada por Pascal, a impressão psicológica frequentemente associada à tonalidade musical menor é a de sentimentos de introspecção, tristeza ou humor melancólico. Por outro lado, a tonalidade maior, em geral, evoca extroversão e sentimentos alegres. Assim, talvez Villa-Lobos percebesse na imagem panorâmica, mais provavelmente capturada em tons monocromáticos na década de 1920, ou mesmo antes, algo de lúgubre. Certamente, havia algo de lúgubre em andamento naquele período inicial de Segunda Guerra Mundial, que sucedeu os longos anos da também lúgubre Grande Depressão. Essa percepção aparece, no relato segundo Pascal, contrabalançada com o fato de Villa-Lobos saber que o “interior da cidade” era predominantemente maior, o que poderia ser uma referência à intensa atividade naquela parte da cidade de Nova Iorque.
A Grande Depressão econômica trouxe um período de estagnação que se estendeu por uma década, a partir de agosto de 1929. Obviamente, Villa-Lobos tinha conhecimento dos efeitos catastróficos de abrangência mundial, particularmente severos sobre os EUA, daquele período de agruras econômicas que então terminava. Mesmo nunca tendo visitado Nova Iorque, Villa-Lobos estava ciente de que havia lá certo otimismo, apesar do assombro da grande guerra que se avizinhava, em relação à retomada do crescimento econômico americano, cujo centro financeiro já era (em 1939) Wall Street, localizada no Baixo Manhattan. É difícil, senão impossível, determinar com precisão, mas plausível supor que tais fatores tenham pesado em sua avaliação inicial da imagem e na seleção de tonalidade da peça New York Skyline. Consistente com essa mistura temas e motivos, Villa-Lobos emprega a armadura de clave correspondente aos tons C (dó maior) e Am (lá menor), embora tenha dito, segundo Pascal, que “basearia [a peça] em Cm”, mas parte numa incursão que, segundo a percebo, pouco se prende a qualquer tom.
No que diz respeito ao relato de Júlio Pires, na reportagem especial para a revista O Cruzeiro, Villa-Lobos teria pedido a Pascal uma fotografia de alguma montanha americana, com o fim de demonstrar sua técnica de composição “Melodia das Montanhas”. Diante da resposta negativa de Pascal, acudiu Villa-Lobos que poderia ser a imagem de alguma vista de Nova Iorque. “Perfeitamente”, respondeu Pascal, “e retirando do bolso, entregou a Villa Lobos uma foto com vista para o Baixo Manhattan, desde o porto de Nova York, vendo-se ao fundo, formada pelos arranha-céus, uma verdadeira cordilheira de montanhas (sic.)” (PIRES, 1940, p. 15). A seguir, o repórter explica que Villa-Lobos usou uma folha de papel transparente sobre a foto para contornar a imagem dos edifícios na fotografia de Pascal. “Calcando em seguida aquelles riscos sobre uma folha de papel com escala musical, pode o maestro brasileiro fixar na pauta as notas musicaes suggeridas pelas diferenças de altura daquelles prédios todos (sic.)” (ibidem, p. 16). Villa-Lobos teria não apenas composto a peça inteira em menos de duas horas, mas logo depois de terminar a composição, teria também levado Pascal ao estúdio da Rádio Municipal, onde tocou a peça e gravou-a em um disco que deu de presente ao repórter americano (ibidem, p. 18).
O professor e musicólogo Carlos Kater explica que o método de composição “Melodia das Montanhas” teve como meta oferecer a alunos de música um caminho para a criação musical (KATER, 1984, p. 102). Kater argumenta que mais importante do que as possíveis influências sobre Villa-Lobos, que resultaram no desenvolvimento do método “Melodia das Montanhas”, é que Villa-Lobos tivesse concebido “tal processo de construção melódica — ou mais precisamente, de derivação à (sic) partir de entidades extramusicais — e tê-lo aplicado a diferentes obras, especialmente em seu trabalho pedagógico de formação musical” (ibidem, p. 103). A transposição do comentário de Kater sobre pedagogia musical para os Estudos da Tradução pode ser conseguida pelo ajuste de foco, tirando-o do tópico “formação musical” para a “derivação a partir de entidades extramusicais”. Toda tradução é, pelo menos em seu estágio inicial, um processo de derivação. Em diferentes graus e de diferentes maneiras, todo processo criativo é também processo derivativo. Seja na criação de uma obra de arte ou na de um mecanismo utilitário qualquer, todo pensamento criativo deriva de pensamento preexistente. O que marca a tradução como diferente da criação na obra fonte é que a tradução elege um referencial mais ou menos restritivo, ao passo que a criação não necessariamente se restringe sob qualquer referencial. Ao eleger a imagem em uma fotografia como referencial restritivo, Villa-Lobos estava, com efeito, compondo uma tradução do visual para o aural.
Para compreender a transferência interartística como tradução, é necessário prescindir dos índices de reversibilidade do texto traduzido como critério classificatório do que seja tradução. O que importa mais não é quanto se possa recuperar da obra fonte pelo exame da obra meta, mas o processo de derivação orientada por um referencial específico e preexistente, que descrevi acima. Observa Kater, porém, que mesmo um grau maior de reversibilidade do texto artístico fonte poderia ser obtido a partir da tradução pelo método “Melodia das Montanhas”. Isso se deve à seleção cartesiana de camadas de informação empregada pelo sistema de Villa-Lobos.
A imagem a seguir, gentilmente digitalizada e cedida pelo Museu Villa-Lobos, contém o Gráfico para fixar a Melodia das Montanhas, desenvolvido por Villa-Lobos. Na coluna à esquerda, está disposta a sucessão cromática de 85 notas, iniciando com o A0 (27,5 Hz) e subindo até o A7 (3520 Hz). Os relevos mais importantes da imagem fotográfica são copiados em papel transparente sobreposto à imagem. A tônica da melodia, segundo explicado por Kater (1984, p. 102), corresponde à base da montanha ou ao nível do mar, conforme o caso. Uma vez determinada a tônica da melodia, tem-se o referencial de transferência dos contornos da imagem fotográfica, capturada em papel transparente, para a escala milimetrada do gráfico, sendo a coordenada de cada ponto correspondente a uma frequência específica. Com isso, forma-se a melodia da peça com as notas em sucessão na horizontal e nas diagonais, da esquerda para a direita. A duração de cada nota também é determinada pelas coordenadas no gráfico milimetrado. Cada quadro em sucessão horizontal corresponde a uma unidade que, segundo Kater (ibidem), pode variar entre a semicolcheia e a semínima. O andamento, medido em pulsos por minuto (ppm), e o compasso são livremente definidos, tal qual a tonalidade. Uma vez que esses valores estejam definidos, transfere-se a melodia para a pauta musical comum. Da reversão desse processo, argumenta Kater, “obtemos a decodificação precisa do perfil melódico e a restituição aproximada do estímulo geral de origem” (ibidem). Em outras palavras, obtêm-se a reversão do processo tradutório.
Partindo de uma versão de New York Skyline de 1957, Kater (1984, p. 105) traçou o perfil melódico na imagem abaixo em uma demonstração do que pode ser descrito como processo tradutório reverso. A peça, como explicado acima, é composta de 33 compassos. O gráfico abaixo não contempla o compasso final da peça.
A linha melódica propriamente dita começa no segundo compasso (em C#3) e se desenvolve ao longo dos compassos 2 a 16, em intervalos correspondentes às diferenças de alturas dos edifícios na imagem fotográfica, e se repete nos compassos 17 a 32. O relato de Pascal informa que o ponto culminante da linha melódica corresponde perfil do Edifício Woolworth, um arranha-céus de 58 andares, com 241,4 m de altura, localizado no número 233 da Broadway, em Manhattan, Nova Iorque, NY – EUA (CTBUH – COUNCIL ON TALL BUILDINGS AND URBAN HABITAT, 2020). Na partitura, esse pico é representado no 12° compasso pela nota A4 (440hz), a nota lá ao centro do teclado do piano, na extrema direita da faixa realçada em amarelo, na imagem abaixo.
Ao longo da elaboração desta análise, o maior desafio certamente tem sido a falta de informação detalhada sobre a imagem usada como base para a composição de New York Skyline. A análise de uma tradução pressupõe disponibilidade da obra fonte e da obra meta. A cuidadosa pesquisa empreendida neste trabalho sugere que não há registro preciso quanto a que imagem Villa-Lobos teria usado como código fonte. Além disso, de acordo com Slonimsky, Villa-Lobos dava pouca importância à preservação de seus manuscritos, uma vez que tivesse terminado de compor. O catálogo de obras de Villa-Lobos, segundo Slonimsky, “é uma incerteza elástica” (SLONIMSKY, 2005, p. 222). Villa-Lobos teria dito a Slonimsky que a gravadora Ricordi mantinha suas obras, mas o diretor da gravadora, ao exibir o catálogo das obras de Villa-Lobos para Slonimsky, dissera que a gravadora mantinha apenas o catálogo e que as peças eram guardadas pelo próprio maestro. A reação de Camargo Guarnieri e de Mário de Andrade à narrativa desse episódio, por Slonimsky, foi “uma explosão em gargalhadas homéricas. “Você acreditou no catálogo de Villa-Lobos!”” (SLONIMSKY, 2005, p. 223). Não havia dúvidas quanto ao extremamente prolífico gênio criativo de Villa-Lobos, a quem interessavam menos os aspectos burocráticos da manutenção de arquivos do que seus processos e atividades de criação musical. Slonimsky relata ouvir de Villa-Lobos, sobre o desaparecimento de manuscritos seus, “que “as pessoas simplesmente os levam embora”. A versão [inicial do manuscrito] para piano de New York Sky Line Melody, que não tinha cópia, aparentemente se perdeu para sempre” (SLONIMSKY, 2005, p. 220). Embora uma reprodução da peça para piano tenha sido providenciada e a partitura com o arranjo orquestrado tenha sido preservada, a rigor não se pode afirmar categoricamente que uma análise do material atualmente disponível contemple as mesmas nuanças de sentido que Villa-Lobos empreendeu traduzir.
A fotografia que serviu a Villa-Lobos de código fonte foi trazida, conforme o relato de Júlio Pires, pelo repórter Vincent Pascal (PIRES, 1940, p. 15). Pascal, por sua vez, acrescenta alguma informação não conclusiva sobre o perfil da linha do horizonte retratado na referida fotografia. A menção do Edifício Woolworth como o clímax da escalada melódica fornece uma pista importante para esta análise. Pascal descreve a escalada do Edifício Woolworth (PASCAL, 1940, n.p.), cuja posição na linha melódica é assinalada por “WB” na imagem abaixo, e corresponde à nota A4, no 12º compasso da melodia.
Sem acesso à imagem utilizada por Villa-Lobos, é praticamente impossível determinar o ângulo exato de posicionamento da câmera em relação ao assunto capturado na fotografia. Não obstante, com base no relato de Pascal, deduz-se que a câmera estivesse posicionada nas imediações da ponte do Brooklyn, próxima às margens do East River, com suas lentes apontadas para direção noroeste, onde se viam os arranha-céus do Baixo Manhattan em uma conformação significativamente diferente da vista atual. Deduz-se também que a foto levada por Pascal fora tirada entre 1913 e 1930, considerando que o Edifício Woolworth teve sua construção terminada em 1913 e, durante os próximos 17 anos, ocupou a posição de o mais alto edifício do mundo (HISTORY.COM EDITORS, 2018). Visto que em 1931 já existiam no Baixo Manhattan pelo menos três edifícios mais altos do que o Woolworth, e que Pascal o descreve como tema da peça e clímax da escalada, a década de 1920 parece o período mais provável em que a fotografia de Pascal teria sido tirada.
A busca por uma fotografia que melhor se ajuste ao perfil na imagem acima (Figura 19) retornou milhares de resultados, dentre os quais está uma bricolagem proposta por Rodrigo Felicíssimo (2009, p. 89), que sugere a imagem na Figura 21 como possível código fonte para Villa-Lobos na escrita de New York Skyline. Trata-se de uma fotografia de Samuel Gottscho, tirada em 20 de setembro de 1933 e intitulada Clouds over Midtown Skyline II from Long Island City (GOTTSCHO, 1933).
No entanto, a presença de edifícios mais altos que o Edifício Woolworth, além da disparidade entre a linha melódica e o perfil panorâmico na foto, sugere baixa probabilidade de ter sido essa a foto usada por Villa-Lobos. Isso parece ter sido percebido pelo próprio Felicíssimo que, em sua tese sobre a “Melodia das Montanhas”, sugere outra imagem panorâmica de Nova Iorque acompanhada da afirmação de que “o plano experimental do compositor foi elaborado com base nesta paisagem da ilha de Manhattan” (FELICÍSSIMO, 2014, p. 35-36). Se o relato de Vincent Pascal, na revista TIME (PASCAL, 1940, n.p.), for autêntico, tal declaração de Felicíssimo parece igualmente problemática pelos mesmos motivos: o perfil da linha do horizonte não corresponde à linha melódica de New York Skyline e a imagem, legendada como “New York Skyline (c. 1939)” (ibidem), é de um período em que já existiam vários edifícios mais altos que o Edifício Woolworth.
As buscas por imagens panorâmicas de Manhattan, capturadas na primeira metade do século 20, em diferentes mecanismos de pesquisa, tais como Getty, Google, Google Earth, Library of Congress (loc.gov), YouTube, imgur e outros, resultou em dezenas de páginas com milhares de fotos relacionadas. Por triagem visual, selecionei 58 fotografias, além de 130 quadros extraídos de um vídeo gravado nos anos 1930, contendo cenas da área portuária do Baixo Manhattan (NEURAL NETWORKS AND DEEP LEARNING, 2020). Desse total de 188 imagens cuidadosamente analisadas, 45 foram submetidas a um processo de sobreposição de imagens, com o uso dos programas gráficos Gimp e PhotoShop.
Primeiro, com base na digitalização do “Gráfico para fixar a “Melodia das Montanhas””, de Villa-Lobos, as notas da melodia de New York Skyline (versão para piano solo) foram transpostas de acordo com os parâmetros previamente explicados. A pauta comum, contendo os 16 primeiros compassos da peça, foi adicionada ao gráfico para demonstrar as relações aproximadas entre o gráfico da sucessão de frequências sonoras em Hz (ciclos por segundo) e as alturas marcadas pela notação musical43F[1]. Como demonstrado pelo gráfico de reversão da obra aural para visual, elaborado por Kater (1984, p. 105), Villa-Lobos traçou não apenas a linha melódica de New York Skylinea partir dos relevos na imagem fonte, mas também a harmonia da peça foi modularmente construída com base em camadas de informação extraídas da fotografia. Por uma questão de escopo deste trabalho, porém, somente as possíveis relações entre a linha melódica e o topo do perfil panorâmico são exploradas neste artigo.
A imagem a seguir (Figura 22) exibe uma vista panorâmica do Baixo Manhattan desde as proximidades da margem do East River, em Brooklyn Heights, com as lentes da câmera apontadas para direção noroeste. A sobreposição da linha melódica à imagem adota o Edifício Woolworth como principal ponto referencial. Nessa imagem, gerada pelo Google Earth a partir de imagens capturadas em 23 de outubro de 1974 pelas agências americanas NASA e NOAA44F[2], notam-se diversos pontos de convergência entre a linha melódica e o perfil panorâmico do Baixo Manhattan. O ponto de visão e captura da imagem está a 142 metros acima do nível do mar, o que inevitavelmente provoca distorções de perspectiva em relação às alturas descritas na linha melódica. Admitindo a (1) diacronia entre a (1.1) captura da imagem originalmente usada por Villa-Lobos (cuja data se desconhece), a (1.2) escrita da peça New York Skyline (1939) e a (1.3) captura do perfil panorâmico do Baixo Manhattan na imagem abaixo (1974), e a consequente transformação desse perfil, como aspecto de variações sobre o mesmo tema e (2) as distorções de perspectivas em função da variação de pontos de captura das imagens como fatores atenuantes, poder-se-ia cogitar que a fotografia usada por Villa-Lobos como código fonte tivesse algum grau de semelhança com a imagem que abaixo se vê.
A Figura 23 explora os pontos convergentes entre o perfil sonoro da melodia de New York Skyline e a fotografia SS Coamo Leaving New York,de Jack Delano, tirada em dezembro de 1941 (DELANO, 2008). Os pontos convergentes nesta imagem sugerem que a fotografia usada por Villa-Lobos teria sido tirada de um ponto à direita do ponto de captura de ocupado por Delano, ao registrar a partida do navio S.S. Coamo do porto de Nova Iorque. Por se tratar de uma fotografia tirada em 1941, óbvia está a impossibilidade de esse trabalho de Jack Delano ter sido o material empregado por Villa-Lobos. A imagem é trazida como parte do procedimento de sondagem dos ângulos de captura disponíveis e visa, para além do levantamento de pontos convergentes entre os perfis sonoro e visual, demonstrar a abertura exploratória que orienta este trabalho.
A próxima Figura 24 contrasta o perfil do Baixo Manhattan com o perfil da linha melódica de New York Skyline usando como base uma fotografia tirada em 1936, a partir da extremidade nordeste da Governors Island (FAVRIFY.COM, s.d.). À semelhança das imagens anteriores e pelos mesmos motivos, parece improvável que esta fotografia tenha servido de base para a composição de Villa-Lobos. No entanto, a imagem ilustra como um ligeiro deslocamento de angulação horizontal na relação assunto : ponto de captura, de 39° NE (Figura 23) para 22° NE (Figura 24), pode afetar o alinhamento dos perfis. A Figura 23 contém 23 pontos em quatro seções, cujas linhas fazem aproximação entre os perfis sonoro e visual, ao passo que figura seguinte Figura 24 contém 27 pontos em seis seções de convergência entre os perfis.
É importante notar que a angulação vertical entre o assunto da fotografia e seu ponto de captura é igualmente determinante para o índice de correspondência entre os perfis sonoro e visual analisados. O gráfico com o perfil das frequências sonoras da melodia de New York Skyline poderia ser usado para obter o ângulo vertical aproximado entre assunto e ponto de captura caso se soubesse ao certo que imagem foi usada por Villa-Lobos. No entanto, se a imagem estivesse disponível, o problema de determinação de ângulo sequer existiria. A busca da imagem partindo do perfil sonoro, ou a reversão do texto aural para o texto visual, seria, em tese, possível com o auxílio do gráfico elaborado por Kater (Figura 17), que inclui traços relativos às frequências sonoras da harmonia musical. Essas linhas complementares, no âmbito da técnica da Melodia das Montanhas, representam camadas de relevos anteriores conformados por edifícios mais baixos, na fotografia. Com essa informação complementar seria possível a utilização de sistemas inteligência artificial para reconhecimento de padrões em imagens. Uma vez reconhecidos os padrões, o passo seguinte seria rodar um algoritmo de busca em bancos de dados de imagens para encontrar padrões semelhantes, no que poderia ser chamado de tradução reversa assistida por inteligência artificial.
As imagens examinadas até agora foram registradas a partir da década de 1930, época em que prédios mais altos que o Edifício Woolworth, no Baixo Manhattan começaram a ser erguidos. A imagem abaixo (Figura 25) foi capturada em 1° de janeiro de 1930, quando o Edifício Woolworth ainda era considerado o mais alto prédio em todo o mundo. Ao que parece, a imagem foi capturada de alguma embarcação que se aproximava de Manhattan, nas imediações da Governors Island.
Por causa de seu ângulo de abertura horizontal menor que o das imagens anteriores, 31 (30 à esquerda e 1 à direita) dos 80 pontos que compõem o perfil melódico de New York Skyline não são contemplados com sobreposição à imagem. Apesar disso, dentre as imagens selecionadas e analisadas, a fotografia acima é que mais favorece a convergência entre os perfis melódico e visual, contendo 42 pontos de convergência em 8 seções de pontos contíguos. Entretanto, a parte do perfil formado pelas notas a partir do compasso 14 diverge significativamente do último terço à direita, no perfil visual. Ainda que esta não seja a imagem, provavelmente não é o material de que Villa-Lobos fez uso na composição de New York Skyline, as semelhanças entre os perfis são suficientes para propor que o maestro teve, ao menos em parte, aquela vista panorâmica como código fonte para sua tradução interartística.
Em termos quantitativos, o melhor cenário (Figura 25) apresentou os seguintes resultados na relação entre perfil melódico e perfil gráfico.
ÍNDICE DE SOBREPOSIÇÃO | Total | Percentual |
Pontos não contemplados por sobreposição | 31 | 38,75% |
Pontos na área de sobreposição | 49 | 61,25% |
Pontos convergentes em relação ao total de pontos | 35 | 43,75% |
Pontos convergentes em relação à área sobreposta | 35 | 71,43% |
Os resultados na Tabela 2 sugerem que a imagem originalmente usada por Villa-Lobos para traçar o perfil musical em New York Skyline poderia ter sido capturada a partir de uma embarcação localizada nas imediações da Governors Island. Dentre as 188 imagens selecionadas, das quais 45 foram cuidadosamente sobrepostas ao perfil melódico de New York Skyline, a imagem na Figura 25 é a que melhor corresponde à linha do horizonte do Baixo Manhattan, à época.
Em síntese, esta análise da transposição de um perfil gráfico para o perfil melódico em New York Skyline resultou na constatação de que o conjunto de dados, reunido a partir de busca sistemática de milhares de registros em diversos bancos de imagens, não oferece suporte conclusivo quanto à determinação do ângulo de captura da imagem fotográfica utilizada por Villa-Lobos. Entretanto, observa-se no método composicional “Melodia das Montanhas” a seleção de camadas de sentido no código fonte e subsequente reprodução dessas camadas no código alvo. A abordagem cartesiana do método de Villa-Lobos atribui à obra meta caraterísticas carregadas de certo grau de naturalismo, em contraste com abordagem de Arvo Pärt, em LamenTate (vide p. 101), da obra Marsyas, de Anish Kapoor.
Que dizer do método “Melodia das Montanhas” em relação à tradução multimodal? Considere esta questão no capítulo concludente deste trabalho.
[1] A notação indica o andamento moderato, com 60 pulsos de semínima (♩) por minuto. Com base nisso, os primeiros 16 compassos seriam tocados em aproximadamente 64 segundos. A fórmula 4/4 indica que cada compasso contém quatro tempos preenchidos por semínimas (♩ ♩ ♩ ♩) ou por figuras equivalentes.
[2] NASA – National Aeronautics and Space Administration (https://www.nasa.gov); NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration (https://www.noaa.gov).